Por que os negros viajam menos?

por Guilherme Soares Dias

Com aplicativos e agências especializadas em turismo para descendentes afro, viajantes tentam fugir do racismo e viajar com mais frequência

O número de brasileiros que viaja ao exterior chegou a 8,5 milhões em 2016, segundo dados do Ministério do Turismo. O que nenhum órgão ligado ao turismo e nenhuma das principais agências de viagem e intercâmbio do país consegue precisar é qual a porcentagem de pessoas negras dentro desse universo. Não há dados exatos ou sequer estimados. “Sabemos que é um público menor”, se limitou a responder uma das agências, mas sem arriscar o quanto. Mas isso, quem viaja, já sabe. Mesmo em lugares abarrotados de brasileiros é difícil encontrar negros – isso apesar de o Brasil ter 54% de sua população identificada como preta ou parda. Nos últimos anos, porém, surgiram aplicativos e agências de turismo e intercâmbio se especializaram em atender esse público, podendo ter ou não o foco voltado para um roteiro dedicado às raízes africanas. São ações importantes para tentar mudar essa realidade.

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Uma das iniciativas surgidas com foco no turismo negro foi a Diaspora.Black, uma plataforma virtual que articula em rede viajantes e anfitriões, conectando-os a serviços relacionados à cultura negra em diversas cidades do mundo. O desafio é encontrar espaço nas cidades onde negros possam estar despreocupados e se sentir bem recebidos. A ideia da plataforma ocorreu após alguns dos criadores, que faziam parte de sites de acomodação compartilhada, passarem por experiências racistas, como hóspedes que abandonam a casa ao descobrir que o anfitrião é negro ou menor número de hóspedes comparados com apartamentos de amigos brancos. “Eu acabava recebendo muitos afro-americanos ou pessoas interessadas na cultura negra. Essas experiências demostraram a necessidade de um serviço que valorizasse e respeitasse a população negra”, acredita Carlos Humberto Filho, um dos fundadores da plataforma, que disponibilizava seu apartamento no Rio.

Em operação desde julho, a rede está presente em dez países e conta com mais de mil usuários cadastrados. Além de casas e imóveis particulares, a plataforma também articula espaços como quilombos, terreiros e centros culturais, com o propósito de fortalecer a rede de turismo étnico a partir do olhar afrocentrado. “O objetivo é promover o acesso de visitantes que valorizem experiências autênticas e, sobretudo, pactuem com a preservação da memória e tradições locais”, afirma a desenvolvedora da plataforma Maria Rita Casagrande.

Ela reforça que a desigualdade racial e estigmas ainda são reproduzidos em plataformas convencionais. Segundo pesquisa da Universidade de Harvard, os negros têm 16% menos chances de serem aceitos ou receberem hóspedes. “Outras pesquisas indicam que os algoritmos das plataformas convencionais restringem a visibilidade de anunciantes negros mesmo em bairros e cidades de maioria negra, o que favorece a concentração de renda e a exclusão econômica em plataformas colaborativas”, ressalta.

É na contramão dessa lógica que trabalha a Ebony English, que oferece aulas de inglês com a valorização da cultura negra e proporciona opções de intercâmbio a alunos e não-alunos interessados em conhecerem países em que há conexão com outros negros. Os Estados Unidos foram um destino muito forte, mas com a alta do dólar cedeu espaço para a África do Sul. “Atendemos na maior parte negros que não se sentem contemplados em outros programas. Há pessoas que, inclusive, já fizeram outros intercâmbios e não foram tão acolhidas”, explica a diretora de marketing e novos negócios da escola, Marta Celestino. Ela reforça que esse é um nicho do mercado abandonado pelo racismo institucional. “São pessoas que têm dinheiro e que buscam produtos em que se sintam representadas.”

Militância nos EUA

Nos Estados Unidos, há um movimento chamado Black Travel Movement, cujo objetivo é fazer com que negros e latinos sejam vistos como parte das pessoas que estão viajando a lazer e não apenas a serviço. Por lá, são 54 milhões de negros (o que equivale à metade da população autodeclarada negra no Brasil) e pelo menos 10 milhões realizam uma viagem internacional por ano. No mercado doméstico americano, essa população movimenta US$ 48 bilhões, segundo o Instituto Mandala, especializado em turismo.

Alguns aplicativos de viagem auxiliam os afro-americanos que querem ter contato com a cultura negra de outros locais. Uma das primeiras publicações nesse sentido foi a Travel Noire, plataforma que reúne posts de colaboradores de diferentes países e pretende fornecer ferramentas e recursos para o viajante não convencional, enquanto o Nomadness Travel Tribe reúne cerca de 15 mil membros e permite o compartilhamento de oportunidades de viagem e organização de pacotes para destinos em comum.

Os norte-americanos são o maior público do turismo étnico também em destinos brasileiros. Na Bahia, onde o segmento é incentivado pela Secretaria de Turismo local, foram 50 vôos exclusivos para o segmento em 2016. A proposta é o turismo de experiência em que há imersão cultural. Entre os roteiros mais requisitados estão candomblés em Salvador, participação em ensaios de blocos afro, festas populares, como a Festa da Boa Morte e de Yemanjá, workshops de capoeira, produtos associados à cultura afro-baiana, visitas em comunidades quilombolas, workshops de culinária de terreiro, entre outras atividades.

Racismo em toda parte

Para os viajantes negros “profissionais”, que já têm experiência em desbravar o mundo, o racismo se manifesta de formas diferentes em cada local. A maior parte deles começa “sutil”, passando por olhares atravessados ao entrar em lojas, revistas mais elaboradas em aeroportos chegando até a ofensas raciais. Foi o que passou a blogueira Paula Augot ao visitar a Finlândia. “Sofri dois ataques racistas em Helsinque. Na primeira vez, um homem me chamou de serviçal; na segunda, um outro me intimidou com um o olhar e parecia que ia sacar uma arma pela maneira que pôs a mão dentro do casaco. Foi um dos piores momentos da minha vida. Tive medo, mas continuei com o olhar fixo encarando-o, afinal não havia nada de errado comigo. Foi uma situação muito traumatizante”, conta a brasileira que mora em Londres e escreve seus relatos de viagem no blog No Mundo da Paula.

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Viajante experiente, ela diz que já desistiu de ir a países do leste europeu por estar sozinha. “Nesses últimos anos estamos vendo a extrema direita ganhar força em muitos lugares e houve um aumento nos crimes de ódio. Então, em países com menor presença de imigrante, eu sempre me sinto mais desconfortável”, afirma. No sentido oposto, Paula também viveu experiências positivas, como na Turquia, onde ser negra deixava claro que era turista. “Eu era a atração em qualquer lugar em Istambul, as pessoas falavam comigo, elogiavam meu cabelo... Tudo bem que muitas vezes era apenas por eu parecer turista e para comprar, mas ser negra me trouxe muitas vantagens”, considera. Mas foi em Cuba que a blogueira se sentiu inserida. Lá, ela conseguia se ver de alguma forma parecida com os locais e, assim, era tratada de forma mais calorosa. “Fui poupada dos golpes para turistas, afinal eu parecia um deles.”

Já o jornalista especializado em viagens David Carneiro, 33 anos, lembra que ninguém gosta de não se sentir bem-vindo ou ofendido injustamente, mas que nunca deixou de viajar por causa desses receios. “Qualquer ato racista sempre diz mais sobre a pessoa em si do que sobre o valor de nós mesmos. Não me deixo paralisar pelo receio. Isso não significa uma atitude passiva diante da problemática. Sempre que possível reajo de maneira ativa, mas não violenta, a situações de preconceito”, destaca.

Casado com uma romena, ele mora no país do leste europeu há quatro anos e enfrentou mais burocracia para tirar o visto do país em comparação com um de seus amigos brancos, além de ganhar a permissão por menos tempo. Em Londres, ele foi confundido com o funcionário de uma loja em que tentava comprar lembrancinhas. Já no Marrocos, passava por local na rua e, mesmo após ser descoberto como brasileiro, o entusiamo dos anfitriões continuava: ganhava abraços, convites para tomar chá, conhecer a família. “Não é uma regra, mas, geralmente, quanto mais humilde o destino, mais caloroso e amigável tem sido o tratamento comigo”, recorda.

A paixão por viagens do jornalista é explicada como uma um momento de encarar uma mudança de perspectiva. “É a oportunidade de ver as coisas e pessoas de outra maneira, um exercício de conhecer outras realidades e de se colocar, mesmo que momentaneamente, no lugar daquelas pessoas que até então eram apenas desconhecidas. Viajar me fez também evitar as generalizações: acredito que existem pessoas interessantes e abertas nos países mais racistas, assim como existem pessoas ignorantes e com uma visão limitada nos países mais educados e evoluídos”, defende.

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