por Luiz Alberto Mendes

 

Sempre que me perguntaram sobre o preconceito que as pessoas pudessem ter com relação a mim, a minha resposta sempre foi de que não sentia tal rejeição. Sai da prisão e fui bem recebido em todos os lugares onde fui. Não senti que as pessoas estivessem me rejeitando por conta de meu passado. Até muito pelo contrário; as pessoas pareciam me apoiar e foram muito positivas comigo. Depois ficou um pouco mais claro: as pessoas pareciam me aceitar, mas não me levavam em suas casas, com raras exceções. Isso me incomodava, mas como eu mesmo não gostavam de estar na casa dos outros (estava inseguro quanto ao meu comportamento), nem me importava muito.

Agora, mais de 10 anos depois, as coisas começam a ficar absolutamente claras para mim. Pensava que, com o tempo, as pessoas iriam perceber que eu nem era mais aquele que esteve preso, que eu já era outro e outros. Mas não, agora que não sou mais sensação parece, recrudesceram as atitudes preconceituosas contra mim. Por exemplo, há pessoas que não lêem o que escrevo porque estive preso. Não querem nem saber qual o valor de meu texto, eliminam-me sumariamente. Há um bloqueio à literatura que produzo. Na USP eles catalogam o que escrevo de "literatura carcerária", e eu nem preso estou. As editoras, salvo raras exceções, não querem nem pensar em me ler, quanto mais publicar. As pessoas não me aceitam, com raras e honrosas exceções também.

Sem perceber, passei a omitir meu passado ao conhecer novas pessoas. Comecei a me esconder, perdi a vontade sair casa e ir na casa até de parentes. Passo semanas sem sair de casa. E quando saio, é para lugares que ninguém me conhece e posso manter o anonimato. Shoppings Centers, por exemplo. Procedo como se estivesse foragido, inconscientemente. Passei a me afastar de pessoas que antes enxergava como amigos. Não frequento lançamentos de livros, saraus, festas e nem ambientes onde se encontram escritores. E gostaria muito; gosto dessa gente.

Pensava que as pessoas me respeitassem, mas não, elas têm receios quanto a mim. Ficam com um pé atrás comigo. Temem falar comigo e dizerem qualquer bobagem para mim e me aborrecerem. Acham que posso voltar a ser o que fui e constituir-me em um perigo para a vida delas. Elas nem sabem direito o que fui e o que fiz para ter sido preso tanto tempo e já me temem. Respeitam porque têm medo.

Há quem goste de ser temido. Eu não, muito pelo contrário; detesto. Gosto de ser respeitado e pelo que me constitui. E devidamente, porque lutei desesperadamente para me construir em uma pessoa digna de mim. Combati vícios, limites, estruturas de violência e poder; tenho sido a favor da paz e de todas as causas que considero justas. Combati a cultura criminosa à qual fui condicionado e estava impregnado, desde muito pequeno, no que hoje é chamado de Fundação Casa. Lutei contra meus instintos bestiais com cultura e conhecimento, tornei-me tão frágil como são as pessoas comuns. Não roubo nem uma bala no supermercado e não devo nada a ninguém. Nem a prazo gosto de comprar; comigo é tudo no dinheiro e na hora. Afastei-me de todos os contatos criminosos. Não tenho nada a ver com crime ainda quando preso. Eu era professor, alfabetizei trocentos companheiros e virei escritor quase três anos antes de sair aqui fora. Vivo de muito pouco, não tenho nada, nem carro ou moto. Condicionei-me ao pouco que consigo. A minha opção por me tornar escritor é séria e os críticos literários confirmam minha aptidão. Amo escrever: é uma das poucas alegrias de minha vida. Caso pudesse, viveria somente escrevendo e estudando para escrever sempre melhor. Saio de casa apenas para atender a compromissos profissionais. Não me vinguei de nada e nem de ninguém. Não tenho mais nem lembranças dos muitos que me torturaram, que me humilharam e espezinharam por dezenas de anos. E nunca achei que estivesse fazendo nada de excepcional; sempre foi minha obrigação tornar-me em um cidadão como os demais.

E hoje, lamentavelmente, percebo que o preconceito contra mim irá perdurar até minha morte. Nem minha memória será preservada; sempre dirão contra mim por conta de meu passado. Até na família as pessoas ainda me temem. Evitam contato comigo e se afastam de quem me defende. Em qualquer comemoração que eu vá, me olham qual eu fosse um bicho raro, alguns sequer me cumprimentam. Outros me olham do alto de suas "honestidades". E me isolam, me deixam sozinho. Qualquer expressão que eu tenha em minha cara, eles interpretam que estou aborrecido, reúnem-se em suas panelinhas e me deixam sozinho. Ao ponto de hoje eu haver tomado uma decisão: não vou mais na casa de ninguém. Natal, Ano Novo, passarei só em casa. Liberei os meus filhos e companheira para que frequentem quem queiram e me prepararei para estar só. Muito melhor estar sozinho em minha casa do que estar só no meio dos outros. A solidão aqui é muito mais fácil de viver. Aprendi a conviver comigo mesmo na prisão e estou reaprendendo aqui fora, obrigatoriamente, para não me magoar em demasia com as pessoas.

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Luiz Mendes

28/12/2014.     

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