por Redação

Grupo 4P fala sobre a importância de se levantar a bandeira da causa negra

O Grupo Negro 4P nos enviou um contraponto ao depoimento de Elisa Freitas, Miss Mundo Santa Catarina 2014, publicado na edição de abril da revista Tpm

 

“Nunca tive nenhum empecilho ligado à minha cor ou à minha origem social na hora de encarar o mundo. Nunca senti nenhum tipo de preconceito. Acho que sou tão bem resolvida que, se houve algum preconceito contra mim, não percebi. Na minha opinião, está na cabeça de quem interpreta.” Elisa Freitas, Miss Mundo Santa Catarina 2014.

Há menos de um mês para mais um 13 de maio, em meio às discussões por todo o país sobre a questão das cotas raciais, as reverberações das declarações de Pelé sobre o racismo no futebol - ou falta delas -, nos deparamos com a declaração de uma mulher negra, com visibilidade na mídia catarinense, que afirma nunca ter percebido os sinais do racismo ao longo dos seus tenros 24 anos de idade.

Elisa Freitas era a única negra em meio a tantas mulheres num concurso de beleza. A foto desse concurso, com todas as mulheres reunidas, é a sinceridade do racismo retratada em cores para quem quiser ver. Enxergar o racismo na própria pele por vezes pode demorar, pode doer e, infelizmente, pode não acontecer por vários motivos. Queremos deixar claro que, não por culpa d@s negr@s, e sim por um processo longo e lentamente construído de destituição do poder que nossas raízes negras possuem. Por esse motivo, este discurso se faz presente nas falas de alguns dos nossos. Entendendo que esse discurso precisa ser desconstruído e combatido, o Coletivo Negro 4P - Poder Para o Povo Preto - vêm à público desmitificar e discutir essas falas tão enraizadas na nossa sociedade, que acabam por colocar o negro como responsável pelo processo de discriminação que ele mesmo sofre.

É urgente que este processo historicamente construído seja analisado e exaustivamente debatido entre @s negr@s. É através da revisão da nossa história que nos será garantido construir um discurso de empoderamento, de luta e consciência política acerca do que é ser negr@ na sociedade brasileira.

Constituir-se politicamente como negr@ não é um simples processo de afirmação, mas pressupõe uma reflexão da sua condição histórica, um processo crítico das falas discriminatórias que sempre estão presentes na nossa sociedade. Requer que caminhemos do lugar que nos foi destinado, para seguirmos até a compreensão e escrita de nossa própria história. Quando a Miss Elisa Freitas diz que não levanta bandeiras, até entendemos o que ela pretende dizer, porém é importante ressaltar que levantar bandeiras não está necessariamente ligada à filiação partidária mas, sim, política. Debater e se posicionar acerca da questão negra em um país que traz o ranço do Mito da Democracia Racial é o mínimo que se espera de alguém que vem de um lugar humilde, e consegue, de alguma forma, ascender dentro do contexto social em que vivemos. É necessário compreender, conhecer a história, e enxergar que, desde que nossos antepassados chegaram nesse país, vivemos do mesmo modo: invisibilizados, apartados, discriminados, criminalizados, desqualificados e inferiorizados.

 

"Debater e se posicionar acerca da questão negra em um país que traz o ranço do Mito da Democracia Racial é o mínimo que se espera de alguém que vem de um lugar humilde, e consegue, de alguma forma, ascender dentro do contexto social em que vivemos"

 

Quando Elisa Freitas fala sobre as crianças da comunidade onde vive: “... Elas vêem o pé do morro como outro mundo e têm medo dele.”, fica nítido que ela não consegue entender que existe nas entrelinhas uma divisão, “os de cima e os debaixo”. E essa divisão é notoriamente uma forma de segregação, se levarmos em conta a história da formação das favelas

A comunidade a qual Elisa Freitas diz ter nascido, assim como tantas outras, são oriundas do processo de higienização social século XIX. Processo que delegou aos negros a ocupação dos morros, afastando-os da parte mais baixa da cidade. Este talvez seja o outro mundo que as crianças vêem mais abertamente do que Elisa, pois se no entendimento dela as crianças tem resistência é porque sente na pele, que existe uma segregação. Portanto, por estar inserida nesta comunidade, por si só a Miss já deveria ter sido motivada a refletir sobre o tema, pois a mesma afirma querer trabalhar com crianças. Logo, teria que pesquisar e conhecer mais a fundo a questão da crianças negras e periféricas.
O que falta à nossa representante, na nossa concepção enquanto movimento com bandeira, é a compreensão de que a palavra tem o poder de preservar nossa cultura, nossa história. E reconhecer-se alvo de preconceito não é colocar-se num lugar de vítima, mas sim mostrar a essa cultura eurocêntrica e opressora que o preconceito é estrutural, e deve ser combatido inclusive com políticas públicas, a exemplo das cotas raciais. Esta sim é uma bandeira que deve ser levantada, e que, aliás, já é levantada por muitas mulheres negras; nossas griots nos ensinaram e continuam nos educando a perpetuar uma memória. Nós, mulheres negras, somos resistência em nossas casas, bairros, comunidades, escolas, universidades, mostrando que é necessário exaltar nossas raízes, enegrecendo uma história que foi contada pelos não-negros.

 

 

"@ negr@ não aparece como protagonista da história deste país. Assim crescemos sem nos orgulharmos de quem somos, alijados de referências"

 

 

Uma das formas de apresentar nossas demandas para discussão é através de um lugar de destaque conquistado por um@ negr@, nos tornando visíveis aos olhos da sociedade e mostrando às novas gerações que eles devem ter orgulho da sua raça, da sua cor e de suas origens. O que a Miss Florianópolis nos faz perceber é a lamentável falta de representações negras em sua vida, além da negligência educacional, pois acreditamos que se a África se fizesse presente em nossos cadernos, talvez não seria necessário discutir a invisibilidade do negro no Brasil. Infelizmente, nossa história é sonegada nos manuais escolares. @ negr@ não aparece como protagonista da história deste país. Assim crescemos sem nos orgulharmos de quem somos, alijados de referências.

É lastimável ouvirmos de pessoas negr@s declarações como as de Elisa Freitas. Não faz parte do projeto curricular aprendermos sobre a história de heróis e heroínas negr@s, de princesas e príncepes negr@s, de pensador@s negr@s, de inventor@s negr@s, mesmo tendo muitos deles pelo mundo, e aqui mesmo no Brasil podemos citar como exemplo: Machado de Assis, Abdias do Nascimento, Carolina Maria de Jesus, Cruz e Sousa, Antonieta de Barros e por aí vai.
É interessante e espantoso para nós mulheres negras ler uma frase onde Elisa diz que: “Meus pais nunca me fizeram sentir esse tipo de isolamento, nunca me colocaram como alguém excluído da sociedade”. Todas temos, no mínimo, uma dezena de histórias de preconceito e isolamento sofridas desde a infância. Histórias como a de Dona Jacira, mãe do rapper Emicida - postada na revista Tpm -, que dói ler. Mas uma dor necessária, que nos faz lembrar o porquê de estarmos aqui, discutindo acerca daquilo que nos fere. Segue:

“Não sabia o que era racismo até ter uns 7 anos, quando fui para a escola. Queria muito colocar um sapato Vulcabras e um uniforme, mas não foi o que eu imaginava. Era uma escola de caridade de freiras e já no primeiro dia elas começaram a nos separar por cor. Assim eu descobri que eu era negra. De um lado ficaram as crianças de cabelo ruim e do outro, as de cabelo bom. Mas, espera aí, era meu cabelo, não sabia que ele era ruim! Para completar, as negras apanhavam muito. Mesmo. As freiras nos davam banho de violeta genciana dizendo que era para nos limpar, pois éramos sujas. Hoje sei que era para esconder as marcas das surras. Um dia eu mostrei as marcas para a minha mãe, que foi tirar satisfação na escola. Na hora, uma moça me levou para uma sala e disse que, se eu falasse a verdade, iam me matar. Era uma criança de 7 anos e acreditei. Desmenti. Quando minha mãe foi embora, o mundo se acabou. Me trancaram em uma outra sala e não sei o que aconteceu lá. Desmaiei. Acordei internada no Hospital Santa Marcelina, onde uma médica dizia que eu não podia ver uma freira que passava mal.” 

 

"Queremos convidá-la para vir somar forças e participar das nossas discussões e tentar, juntos, identificar ali a negritude que revela estar ausente nas suas declarações, pois como Miss, esperamos que ela tenha um posicionamento político e atuante dentro da causa negra"

 

Entendemos que o posicionamento de Elisa Freitas é mais uma estratégia de não sentir na pele a exclusão, processo conhecido de muitos outros dos nossos irmãos e irmãs negr@s. Mas acreditamos que uma jovem, negra, estudante e moradora de comunidade, está aberta a discussão e queira fazer um mergulho na história das suas origens. Queremos convidá-la para vir somar forças e participar das nossas discussões e tentar, juntos, identificar ali a negritude que revela estar ausente nas suas declarações, pois como Miss, esperamos que ela tenha um posicionamento político e atuante dentro da causa negra. Sabemos, contudo, que a tomada de consciência se faz presente a partir do momento em que somos apontados como diferentes. E é deste momento pra frente que, juntos, podemos nos fazer mais fortes. Unidos também devemos contextualizar e problematizar a afirmação de que somos um país miscigenado, não somos preconceituosos, e que, portanto, vivemos em harmonia e com orgulho de nossas raízes.

E é perseverando na construção de uma consciência política, de uma identidade negra, e na luta pela conquista social e econômica que reiteramos nosso convite à Miss Florianópolis, Elisa Freitas, a fazer esta reflexão e tomar conhecimento de como outros jovens negros de sua cidade vêm tentando desconstruir um Brasil com resquícios colonial; a se posicionar quando são inqueridos sobre sua cor; a perceber o quanto essa auto afirmação é importante para a construção da sociedade brasileira. Uma sociedade que vêm sendo pautada e planejada por debates; dentro dos coletivos; dentro dos movimentos negr@s de todo o país; pel@s negr@s que estão ingressando nas universidades por cotas e se colocam à pensar sua condição; pelas mães e mulheres negr@s chefes de famílias que não se curvam diante da discriminação e da indiferença. Enfim, chamamos você, Elisa Freitas, miss, mulher, passista de escola de samba, universitária, e todas outras mulheres negras a fazer parte dessa história, que é nossa. Esta é a nossa bandeira, esta é a nossa Luta!

Vai lá: Fanpage do Grupo Negro 4P http://www.facebook.com/gruponegro4

[N.E.: Alguns grupos ativistas utilizam o símbolo @ (arroba) para abranger todos os gêneros humanos e, dessa forma, evitar aquilo que se considera ser uma discriminação sexual através da linguagem]

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