play

por Camila Eiroa

Jornalista criou rede pra divulgar ações positivas que acontecem nas periferias e hoje colhe os seus frutos

A jornalista Tatiana Ivanovici, 34 anos, sempre teve como foco na carreira divulgar ações que acontecem nas periferias do Brasil, desde uma época em que a chamada "nova classe C" tinha pouca ou nenhuma visibilidade na mídia. Trabalhou na TV Futura, na Folha de São Paulo e na MTV, onde dirigiu o "Yo! MTV", programa dedicado ao rap e hip hop. Mas foi em 2010 que deu o verdadeiro pulo do gato em sua vida. Foi quando criou a Rede DoLadoDeCá, projeto que tem como objetivo incentivar e dar visibilidade a todas as iniciativas que envolvem educação, cultura e entretenimento nas comunidades.

Tati, que nasceu em Mogi das Cruzes, conta que as dificuldades que passou na infância contribuíram positivamente para que a Rede fosse criada. "Eu já vim do não, não tenho nada a perder", diz. Teve a oportunidade de se formar pelo Projeto Aprendiz ao conhecer o jornalista Gilberto Dimenstein e foi apelidada por ele como "aprendiz-problema", pelo fato de querer fazer muitas coisas ao mesmo tempo.

A Rede virou referência e atualmente, mais do que centralizar informações, também aproxima marcas e empresas da periferia e capacita profissionais das comunidades, gerando várias oportunidades e colhendo bons frutos.

Ela conta à Tpm como tudo aconteceu.

Tpm. Como funciona a Rede DoLadoDeCá? 
Tati. Ela foi lançada em 2010. A origem está em um insight que tive sobre a necessidade de existir um canal de comunicação que consolidasse os pilares da cultura periférica e que divulgasse a cultura popular, com seus diversos estilos de música, futebol de várzea, comportamento e literatura. Desenvolvemos a comunicação integrada em comunidades, aproximando marcas e empresas dos seus públicos e conectando as pessoas. Somos uma rede de empreendedores sociais e culturais que faz negócio social na comunicação. Capacitamos constantemente profissionais na periferia, gerando renda e oportunidades para que eles se desenvolvam. O mesmo vale para as pesquisas de mercado, realizadas dentro das próprias comunidades. Assim as pessoas são retratadas como realmente são, evitando interpretações que podem distorcer os dados. Com a Rede surgiu o conceito do Progresso Compartilhado, termo criado por mim, que significa viabilizar o diálogo entre empresas, poder público e articulações comunitárias, com o objetivo de gerar renda e oportunidade de negócios dentro de uma lógica de capitalismo social, onde todos os envolvidos no processo sejam beneficiados.

Também foi lançado um documentário, chamado A Vida Do LadodeCá, para o público da periferia. Qual a importância e o objetivo de vocês com ele? O objetivo era dar rosto aos números da rotulada Classe C: "nova classe média", "baixa renda", "base da pirâmide". A periferia foi retratada pela própria periferia no estudo documental, que também é uma nova metodologia de pesquisa. No doc, várias pessoas falam sobre as mudanças que sentem no dia a dia. Tivemos uma melhora, mas ainda falta muita coisa: escolas decentes, sistema de saúde digno, saneamento básico, moradia. É contraditório ainda enfrentarmos todos esses problemas primários e vergonhosos. O documentário foi idealizado pela Rede em parceria com o IK Ideas e a agência Apis3, tem direção de fotografia de Carina Zaratin e câmera de Antonia Teixeira. O doc também marca o lançamento do Núcleo de Criação DoLadodeCá, dirigido por Irene Knoth, que inclui artistas de periferia como grupo OPNI e Ajamu. 

"O caminho não é apenas o do assistencialismo, mas o da geração de oportunidades, do compartilhamento de informações, da transparência ao lidar com dinheiro" 

Por que trabalhar com a periferia e para a periferia? Como também sofri na pele as necessidades pelas quais passam a maioria das pessoas no Brasil, lutei e mesmo com isso consegui me inserir no mercado e progredir profissionalmente, sentia a necessidade de fazer mais pelo meu ambiente e pelas pessoas ao meu redor, de contribuir de alguma forma para melhorar a situação da periferia e gerar oportunidades. Encontrei esse caminho por meio do meu trabalho. Dentro do cenário econômico que vivemos hoje, de ascensão das classes populares, tem muita coisa pra ser feita. Portanto, se há um movimento de aproximação entre empresas e periferias, é agora que temos que plantar uma mudança real de comportamento. O problema não está no capitalismo, mas na forma em que as relações de negócios são implementadas. Nossas atitudes impactam diretamente em nosso ambiente, estamos interligados, somos todos irmãos e o maior desafio do ser humano é respeitar as diferenças e tomar a consciência de que nós somos responsáveis por tudo. Vivemos uma ascensão econômica e, no entanto, em nosso país não temos a cultura de falar sobre dinheiro. No Brasil falar sobre dinheiro é mais tabu do que falar sobre sexo. Não há uma formação financeira pra que as pessoas administrem de forma sábia seus recursos, as pessoas não trocam esse tipo de experiência como em países desenvolvidos. O caminho não é apenas o do assistencialismo, mas o da geração de oportunidades, do compartilhamento de informações, da transparência ao lidar com dinheiro. Como um jovem empreendedor da periferia vai administrar seu negócio se ele não tiver com quem dividir suas dúvidas, se ele não compreender que existe uma postura no mundo dos negócios e que precisamos saber falar essa língua também? 

Sua infância e adolescência contribuíram para suas escolhas adultas? Como? Sim, diretamente, assim como minha trajetória profissional antes da Rede existir. Comecei a trabalhar muito cedo e desde muito nova já ajudava minha família e tive que lutar muito para me desenvolver. As dificuldades que sofri foram a motivação pra minha luta e esta experiência me fez ver que eu poderia fazer mais pelas pessoas por meio do meu trabalho. Meu lema sempre foi: Não importa o que a vida te dá mas o que você faz com o que a vida te dá.

Qual a sensação de ver a sua periferia em novas transformações e em uma nova fase? A periferia vive em constante transformação. Seja geográfica, populacional ou arquitetônica. Hoje, os olhos do mercado estão voltados para estes locais, que até então eram negligenciados pelo mainstream e pelo poder público. Não por uma preocupação humana, social e cultural, mas porque as pessoas estão mais empoderadas economicamente. Quem não conseguir falar com o povo, vai perder dinheiro e vivemos em um mundo capitalista. Temos que aproveitar este momento para expandir não só economicamente, mas culturalmente e socialmente. A classe C não é nicho, é maioria, que até então era renegada e esquecida e, hoje, é estudada. Essa nova fase tem que ser bem conduzida, para que não seja um momento passageiro e muito menos exploratório, o incentivo ao consumo exacerbado não vai fazer nosso país progredir se as pessoas não estiverem preparadas pra lidar com o dinheiro. Um crescimento intelectual tem que ser real e efetivo para o país, para que as novas gerações possam usufruir disso. É um momento de transformação, de reavaliação de valores. Quem não estiver disposto a se autoavaliar vai ficar para trás. 

"Quando valorizamos os pontos positivos das pessoas, nós estamos fortalecendo a autoestima delas"

Por ser mulher, enfrentou dificuldades? Digo, tanto na implatação de projetos com empresas quanto na própria periferia. Existem desafios que valem a pena ser contatos hoje? Ser mulher significa ser cobrada dez vezes mais do que um homem. Até sua vida pessoal é analisada, o que não acontece com os homens. Sofremos preconceito e, segundo a Unesco, ainda ganhamos menos que os homens, por mais que a maior parte da força de trabalho e de liderança familiar seja nossa. Nós temos de nos desdobrar em mil, temos acúmulos de funções, temos de estar sempre bem vestidas de unhas feitas, impecáveis, porque quando alguém olha pra nós, homens e até mesmo as próprias mulheres, tudo isso é avaliado: sua postura, sua roupa, seu carro, seu vocabulário. No meu caso, sou muito questionada quanto ao meu trabalho: "Nossa, mas como você consegue ser tão conectada com tanta gente e fazer tanta coisa?" - só falta completar a frase com "Como você onsegue fazer tudo isso sendo mulher?". Mas acredito que a responsabilidade de mudança deste cenário seja nossa. Quando lançamos as fotos da nossa marca DLDC também procuramos mostrar mulheres de verdade, que fogem dos padrões estabelecidos. Nós na Rede sempre procuramos incentivar o feminino, por isso fiz o editorial "Mulheres do Progresso" (fora do padrão estético imposto pela sociedade, com mulheres lindas, cada uma no seu tamanho, modelo etc.).

Quais foram seus maiores aprendizados durante esses quatro anos da Rede? Aprendi que quando valorizamos os pontos positivos das pessoas, nós estamos fortalecendo a autoestima delas. Todo mundo quer ser amado mas não entende que precisa amar em primeiro lugar. Limitações e aprendizados todos nós temos, por isso temos que nos aprimorar a cada dia, olhar pra si em primeiro lugar e entender qual é a sua responsabilidade sobre as situações da vida. Somos responsáveis por nossa sociedade, nosso governo, nossa comunidade. 

Quais são seus maiores sonhos e vontades com a rede Doladodecá? Em 5 anos quais são suas expectativas? Que o nosso trabalho seja um instrumento de mudança. Seremos uma grande rede, mais fortalecida ainda, atuando na prática em todo território nacional. Queremos levar a ferramenta do Coaching para a periferia (ferramenta de aprimoramento utilizada por altos executivos). Temos grandes talentos na quebrada, que se forem bem treinados e tiverem sua autoestima fortalecida, serão empreendedores incríveis colaborando para o crescimento do Brasil. Já atuamos em todo país, temos muitas conexões, por isso trabalhamos em Rede. Pretendemos ampliar a capacitação de jovens para que eles possam trabalhar com a gente também. Vamos lançar o documentário Mulheres do Progresso, contando a história destas mulheres de fibra e estamos estudando propostas de levar o DoLadodeCá para a TV. A satisfação está em chegar numa comunidade e saber que parte da renda pra construção da sede do local foi adquirida com o pagamento dos cachês pra nossa equipe, está em nosso artista chegar para uma reunião com sua moto nova porque conseguiu comprar graças ao cachê de grafiteiro. Nós queremos este movimento em grande escala. Queremos que o Progresso Compartilhado seja um movimento de evolução das relações humanas.

Vai lá: www.doladodeca.com.br / www.facebook.com/doladodeca1

fechar