Conflito de viagem: sigo o bonde ou não?

por Gaía Passarelli

É importante saber escutar os próprios desejos. Vale pra vida e valia pra mim naquela noite em Nova Iorque

Era a última noite de uma viagem de trabalho em Nova Iorque, um sábado. O tipo de ocasião em que você tem a obrigação de se divertir, beber, beijar alguém e voltar pra casa (hotel, no caso) com uma história pra contar.  

Depois do último painel da conferência de uma semana, os jovens presentes começaram a dançar na sala e espirrar aqueles sprays de espuma de Carnaval. Meus amigos, animadíssimos e bebíssimos, correram pro metrô sentido Queens, decididos a curtir a noite em um bar de salsa. 

Enquanto isso, eu só queria chegar no hotel com energia o suficiente para tomar um banho e me preparar pra viagem de volta no dia seguinte. Antes, queria comer alguma coisa. Não qualquer coisa, mas alguma coisa deliciosa, temperada, quentinha, suculenta. E mais, tinha que ser alguma coisa que não desse para encontrar no Brasil quando voltasse. Alguma coisa tipo comida tailandesa.  

Conflito de viagem: sigo o bonde ou não? 

Admito, o que queria era uma mesa cheia de gente, risadas altas e mais umas cervejas. A perspectiva de uma noite de salsa e rum era, pros outros, bem mais animadora. Pra mim, não. Sobrei. É chato ser a pessoa que não quer seguir o bonde. E não é privilégio de introspectivo, não. Mas é importante saber escutar os próprios desejos. Vale pra vida e valia pra mim naquela noite em Nova Iorque. 

Poderia até tentar uma desculpa. "Ai, mas preciso entregar a pauta". "Ai, mas já tenho outro compromisso". "Ai, mas o voo amanhã é muito cedo". "Ai, vai indo que eu já vou". Mas não. Às vezes você só não quer ir e às vezes você não tem companhia para vir com você. E tudo bem.  

Claro que é do caralho ter com quem repartir as coisas. Família, amigos, significant others. Só que não dá pra deixar a vida passar enquanto espera esse alguém decidir se vem. Por isso, fiquei sozinha na Índia, cheguei no norte da Escócia, fui de trem pra Oregon. E por isso escolhi jantar num restaurante thai qualquer numa noite de sábado e garoa fina em Nova Iorque.  

É diferente para homem e mulher sentar sem companhia para fazer uma refeição. Ainda mais numa cidade que não é a sua. Você é julgada, sim. Não estou dizendo que homens não sintam solidão ou vontade de ficar sozinhos de vez em quando. Isso é humano. A diferença é a forma como as pessoas enxergam o ser solitário na mesa. Um homem sozinho deve ser um cara viajado, interessante, é uma oportunidade. Uma mulher sozinha deve ser abandonada, indesejada, é alguém a evitar. Coitadinha dela. 

Essa coisa do female solo traveler (pra usar jargão da indústria) opera em extremos. Um extremo é a viajante segura e destemidaque conhece o mundo, tem histórias, coleciona amizades. O outro extremo é a coitadinha, que não tem companhia na vida. Nenhum desses clichês é totalmente real. A pessoa viajando sozinha é uma zona cinzenta: você que olha de fora não faz a menor ideia de como ou por que ela foi parar lá.   

Sou adventista do solo travel, mesmo que em outros momentos viajar sozinha tenha feito mais sentido na minha vida. É importante, sim. Fiz algumas viagens incríveis, descobri o que gosto de fazer ou não, lembrei que fico bem sozinha. Principalmente, reaprendi o quanto é importante respeitar meu próprio tempo. Não poderia recomendar mais. 

Mas o mote do solo travel, tanto faz se para homens ou mulheres, é liberdade. E essa liberdade não combina com os posts tipo "N motivos pelo qual você precisa viajar sozinha" – milhares de links no Google, pode procurar. Porque, na real, você não "tem que" nada, amiga. O que você tem que fazer é o que você quer fazer – seja dançar descalça em cima da mesa no bar ou dormir antes da meia-noite. 

Meu jantar solitário na noite de sábado em Nova Iorque foi mais uma das ótimas refeições que fiz e faço sozinha por aí. Era um lugar do tipo familiar e festivo. Pedi arroz frito que veio dentro de meio abacaxi decorado com papel colorido. Como a Carrie naquele episódio clássico de Sex & the City, não usei livro nem Facebook para me distrair ou fingir ocupação. A família de olhos puxados na mesa ao lado quis fazer amizade. Dei risada das piadas que não entendi, comi, repeti, bebi duas cervejas e fui andando até o hotel, com a barriga cheia e sensação de missão cumprida. 

Aproveitei a oportunidade pra me perder e lembrar como a coisa que mais gosto no mundo é poder andar a esmo numa cidade sem dar satisfação pra ninguém. "Você não é sua melhor versão quando está viajando?", um escritor de viagem uma vez perguntou.  

Acho que a resposta é sim. Com ou sem companhia. 

fechar