Em um restaurante da Rua Batataes

por Milly Lacombe
Tpm #84

O dia em que meu pai me tratou pela primeira vez como gente grande e eu, apavorada, saí correndo

 

Meu pai e eu costumávamos almoçar juntos fora de casa. Como ele nunca dirigiu, era eu que ia aonde ele estivesse. E, normalmente, era meu pai, bom garfo, que escolhia o restaurante.Acho que essa rotina começou a ganhar ritmo pelos meus 25 anos. Embora ainda morasse com ele e com minha mãe, saía de casa muito cedo para trabalhar, voltava tarde e só ficava na cidade durante o fim de semana se estivesse muito doente. Então, esse era o método para manter o papo em dia – futebol, trabalho, livros, artigos de jornal que valiam a pena ser lidos e outros que mereciam ser rasgados. Mas, naquela tarde, quando nos encontramos no Tatini da rua Batataes, meu pai parecia diferente. Nada que pudesse ser constatado por turistas; era uma observação para residentes. Entrei e o vi sentadinho em uma mesa para duas pessoas: ele sempre chegava antes de mim. Cabeça baixa, lia uma revista de turfe. Notei que estava usando aquele terno bege de que eu não gostava (era claro demais), camisa branca e uma de suas dezenas de gravatas em tons de azul: a roupa clara não era o que dava pinta de seu estado de espírito. Talvez a posição da boca tivesse chamado minha atenção: arcada inferior projetada à frente, dentes de baixo mordendo em ritmo regular o lábio superior. Ele só fazia isso quando estava nervoso. Hoje, quando vejo minha irmã mordendo o lábio de cima, em nítida demonstração de ter ficado com a herança, sei que boa coisa não me espera.

Direto para o prato principal
Como sempre fazia quando me via chegar, ele se levantou, colocou o guardanapo na mesa e me deu um beijo e um abraço antes de puxar a cadeira para que eu sentasse. Até hoje sou capaz de sentir a sensação dos abraços de meu pai. Quando era menor,
tinha que me esticar para alcançar com meus braços os ombros dele, e aproveitava para me espreguiçar usando como suporte o seu pescoço. Devia ser um negócio totalmente incômodo para ele, mas o cara nunca reclamou quando eu fazia isso – e acho que dizia até gostar. Com o tempo, os abraços começaram a ficar mais encaixados até que eu, um dia, notei que estava tendo que dar uma leve abaixada para abraçá-lo. Nessa tarde no restaurante foi assim. Quando nos abraçamos, reparei que ele estava especialmente baixo, encurvado, derrotado. Perguntei o que tinha acontecido: quando a intimidade é grande, podemos ir direto para o prato principal, sem a necessidade de arruinar a fome com entradas indigestas. Ele me disse que estava muito deprimido, brigando demais com minha mãe, sem novos desafios profissionais e sem aquele impulso inicial para levantar da cama pela manhã. Depois de uma longa pausa, acabou contando que, pela primeira vez na vida, tinha pensado em desistir de tudo e se matar. Meu coração deu uma parada antes de disparar. E minha falta de jeito diante daquele desabafo, evidenciada por um longo período sem dizer nada, devia-se ao fato de, em nossas conversas, raramente sermos, ele ou eu, os protagonistas. Da minha parte, as escapadas eram premeditadas: eu não queria correr o risco de ver minha homossexualidade revelada. Até porque achava que seria capaz de, para sempre, esconder do mundo e de mim mesma quem eu era. Além disso, nunca me achei digna de dividir com ele assuntos tão sérios. Simplesmente porque, hoje entendo, era no olhar dele, e no de mais ninguém, que eu seria para sempre uma criança, e isso era confortável. Era
na presença dele,e na de mais ninguém, que eu estaria para sempre protegida, e isso era suficiente. Então, sentir meu pai tão indefeso, tão pequeno, tão perdido bem na minha frente estava me obrigando a crescer, e isso eu não estava a fim de fazer.


Gosto amargo da covardia
Quando consegui dizer alguma coisa, o fiz através de clichês. Em meia hora, virei um livro de autoajuda da pior espécie e, com palavras ordinárias, fui me perdendo apressadamente pela terra do lugar-comum. Sabia que o estava decepcionando: mais importante do que tirá-lo daquele lugar, era, pelo menos por algumas horas, entrar ali com ele e enxergar, de dentro para fora, aquelas angústias. Mas não foi o que fiz. Pelo contrário, apressei o almoço como pude e disse que precisava correr porque tinha uma reunião.

Saí de lá carregando comigo a abominável sensação que sentem os covardes de espírito. Naquela tarde, meu pai tinha me tratado como uma amiga, uma mulher, um ser humano maduro. E eu, em pânico diante de minha maturidade, havia saído correndo, como se pudesse fugir do meu destino, da evolução do que era. Como quem, mediocremente, se encolhe diante da chance de abrir mão de um tanto de segurança em nome da bem-vinda liberdade.

Meu pai morreria, vítima de um acidente hospitalar, cinco anos depois. Me deixou cedo demais, mas, ao lidar comigo sempre cheio de respeito e maturidade, suficientemente forte para conseguir seguir pela vida sozinha, para me entender como sou. Hoje, sei que aquele almoço marcou minha entrada no mundo adulto. A partir dali, tive que me reescrever, me revisitar e me rever. Quando o homem que é um pouco do que somos é capaz de nos tratar como se fôssemos uma coisa completamente nova, madura e robusta, é porque, de fato, devemos ser tudo isso. Se pudesse encontrar com ele para mais um almoço e o visse tão triste sei que agiria de forma completamente diferente.Antes de mais nada, não tentaria tirá-lo daquele lugar porque agora entendo que a tristeza é parte do jogo e que, sem ela, a felicidade não pode ser definida.Talvez, pedisse um vinho, talvez citasse algum autor que pudesse ter dito melhor o que eu estava pensando, talvez até chorasse. Mas uma coisa eu certamente faria: diria a ele que não estava com pressa nenhuma porque não tinha nada para fazer naquela tarde a não ser conversar com ele. Porque não tem nada pior do que ignorar que tudo só existe aqui e agora. O segundo atrás e o segundo à frente simplesmente não estão lá – como meu pai estava, naquela tarde de verão em que nos encontramos em um restaurante da rua Batataes.

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