Ingrid Guimarães

por Carol Sganzerla
Tpm #83

Como uma garota fora dos padrões vigentes arrasou na TV e no teatro

Ela lota teatros e sobe audiências com seu humor inteligente. Ingrid Guimarães precisou primeiro acreditar que podia acontecer mesmo sendo “esquisita”, para depois entrar – pela porta da frente – nos palcos e na TV, onde consegue dar graça às fraquezas femininas

Exótica, esquisita e extravagante. Esses três “es” soaram pela primeira vez nos ouvidos de Ingrid Guimarães quando seus pezinhos teimavam em não se equilibrar na ponta das sapatilhas de balé. Pela segunda vez, ao perceber que suas mãos não serviam para dedilhar o piano. Por inúmeras vezes, quando os pais insistiam para a menina largar o guarda-roupa da mãe e ganhar o calor de Goiânia. A atriz cresceu e os “es” seguiram seus passos: ela nunca ganhou o papel da gostosa ou da mocinha, tampouco o da vilã. Afinal, ela não convenceria: não é esbelta demais, delicada demais nem séria demais. Porque a TV pede mais. Só que ela nunca quis ser mais. Quis ser apenas Ingrid: aquela que trocava o maiô pelos figurinos, que faltava à escola quando atores apareciam na agência de publicidade do pai (“tenho uma foto no colo do Tony Ramos. Outro dia encontrei com ele e perguntei: ‘Divulgo ou não?’”) e que recusava papéis estereotipados na TV mesmo sem ter emprego. “Minha carreira foi feita em cima das minhas esquisitices”, reflete.“ Faço comédia sobre fraqueza humana: as mal-amadas, as confusas... Por isso as pessoas se identificam tanto com os meus personagens.”

Satirizando a vida real, Ingrid ganhou espaço nos palcos. Nos anos 90, foi uma das responsáveis pela febre que arrastava milhares de meninas para a platéia de Confissões de Adolescente, posteriormente adaptada para a série de TV, em 1994, na Cultura. Embora crua de vivência, Ingrid foi, dos 16 aos 21 anos, referência de uma geração. Por causa da peça, que rodou o Brasil quatro vezes, passava meses longe dos pais – um jornalista e uma advogada –, vivenciando com as outras atrizes aquilo que não demoraria a apresentar no palco. Com elas, dividiu quartos, choros e alegrias, como sempre fez com as irmãs, Astrid, 37, e Sigrid, 34 (nomes definidos na lua-de-mel dos pais, inspirados em antigas rainhas suecas). E o mesmo ela fez mais tarde, com a comediante Heloísa Perissé, a Lolô, que conheceu na fila de um teste para um dos programas de Chico Anysio. Embora já tivessem enfrentado filas e filas, dessa vez o encontro renderia um sem-número de gargalhadas. O espetáculo Cócegas, escrito e interpretado por ela e a amiga Lolô, já dura sete anos e é um estrondo, assim como seu derivado infantil, Cosquinhas. A parceria ainda rendeu quatro anos de Sob Nova Direção, na Globo, aos domingos. “Foi quando entrei na TV pela porta da frente.”

Top Ingrid
Hoje, aos 36 anos, as portas se abrem para ela. E Ingrid abre portas de mulheres famosas e anônimas no programa de sua autoria, Mulheres Possíveis, no GNT, já em sua segunda temporada. Aos domingos, no Fantástico, a atriz encarna a top model Leandra Borges, inspirada em Gisele Bündchen, e encara o “povão”, como diz. Ela adora. Com esse povão, constatou algo em que sempre acreditou: “É assim, no anonimato, que se é mais feliz”.

Tpm. Você diz que era um ET entre as crianças de Goiânia. Como assim?
Ingrid Guimarães. Era esquisita, meio lenta. Meu pai me chamava de Chimbiquinha, um carro que era devagar... Ele e minha mãe me levaram a vários psicólogos e eles falavam: “Ela é só uma menina diferente”. Na minha época o lance era dançar balé e tocar piano. Quem não era bailarina era um ser de outro planeta. Só que eu não conseguia fazer balé, e minhas irmãs eram as melhores alunas. Acho que, se tivesse pais que me tratassem como “a esquisitinha”, não seria quem sou.

E como era a Ingrid criança? Todo domingo eu fazia uma peça em casa, era uma necessidade! Minha mãe tinha que me tirar do closet, senão passava o dia lá, viajando. Era um drama. Ela falava: “Vai para a piscina, menina!”. Meu pai fazia churrasco e parava tudo para eu fazer a minha peça. Fazia Os Saltimbancos e sempre aceitava ser o Burro, que ninguém queria fazer, para a peça acontecer.

Quando foi que achou seu espaço? Um dia, a dona da escola de balé falou pra minha mãe: “A Ingrid não dá certo aqui” [risos]. Aí ela me viu fazendo um teatrinho em casa e falou: “Já sei. Ela vai apresentar o balé”. Elas me colocaram um fraque e eu falava: “Com vocês, o balé”. Foi a primeira vez que percebi que existia um espaço para mim. E é muito difícil para uma adolescente pensar: “Não é igual, mas é legal”.

Você sofreu muito na adolescência? Muito, porque queria ser igual a todo mundo, só que eu era fora dos padrões. Sempre tive um tipo físico diferente... Para a TV, nunca fui a “mocinha”, mas também não era a “gordinha estranha”. Nunca me encaixava. Nos testes, falavam: “Você tem um tipo exótico”. Esses estereótipos me revoltavam. Na época tinha muito a coisa da “gostosa” em programas de humor. Era a Monique Evans de gostosa e a Zezé Macedo de feia. Não queria ser uma nem outra. Ou você botava uma sainha e falava “chamou, chamou” [imitando a Tássia Camargo, da Escolinha do Professor Raimundo] ou você era a horrorosa. Nunca quis fazer esse estereótipo.

Em que época você decidiu se entregar aos palcos? Quando fiz 13 anos meu pai quis que fôssemos para o Rio. Isso porque ele tinha uma cabeça muito aberta. Era jornalista, um visionário. Trabalhou no Última Hora, com Nelson Rodrigues. Devo muito do que sou a ele, que sempre me incentivou. Dizia: “Escreva suas coisas, você é inteligente, uma hora seu talento vai aparecer”. Minha mãe também sempre foi moderna. Trabalha com petróleo, viaja o mundo. E meu pai não se conformava de a gente não ter acesso a essa cultura.

Como foi sua chegada ao Rio? Ruim. Você sempre acha que o pessoal da cidade grande é melhor do que você. Hoje sei que a minha infância foi mil vezes melhor do que a infância das crianças do Rio e de São Paulo. Não lembro de babá na minha cola, vivia descalça na rua, pulando muro para roubar carambola. Isso incentivava muito minha criatividade...

E você foi atrás do Tablado? Levei muito na cara quando fui para o Rio. A televisão foi uma coisa meio traumática. As pessoas falavam: “Legal, mas você não tem muito o tipo”. Comecei então a me meter em todo curso que aparecia... No Tablado, que era o must da época, só consegui uma vaga numa turma de terceira idade... Até o dia em que fiz um curso com o Domingos de Oliveira.; Eram 40 pessoas em cena e eu entrava em apenas duas cenas. Mas fazia como se fosse Shakespeare. Chamei atenção, ele contou que estava montando uma peça com a filha dele [Maria Mariana] e pediu que eu levasse uns textos meus.

Você levou? Levei um texto baseado numa história real. Uma menina que fumou maconha e saiu na rua com uma toalha amarelo ovo na cabeça. Ela tinha 16 anos, era a primeira vez que experimentava. Como sempre teve cabelo comprido e ficava de toalha o tempo todo, nem se tocou. Todo mundo olhava e ela: “Nossa, como as pessoas são simpáticas no Rio de Janeiro...”. De repente, uma mulher começou a rir da cara dela. Aí, pegou na cabeça e falou: “Estou com a toalha!”. E uma amiga da mãe dela passou, viu e contou.

E rolou uma bronca por causa da toalha na cabeça? A mãe dela deixou uma carta dizendo que, se ela quisesse fumar, que fosse dentro de casa. Essa história virou um dos esquetes mais famosos do Confissões de Adolescente. Foi uma revolução. O Domingos leu e falou: “Isso vai para o palco sem mudar uma vírgula”. Foi quando recebi meu primeiro incentivo e percebi que escrever podia ser uma ótima.

Em Confissões você pôde expurgar suas paranóias de adolescente? Foi uma escola de vida. Recebia cartas de meninas que fumavam maconha e faziam merda, de outras que estavam grávidas...Começamos a dar palestras em escolas e, na verdade, não sabíamos mais do que aquelas pessoas. Foi um fenômeno. A gente era Beatles, bicho. As adolescentes nos seguiam em hotel, éramos ídolos de uma geração. Aquilo foi muito doido para minha cabeça.

Vocês eram meninas de tudo, né? Sim, passei a minha adolescência, dos 16 aos 21 anos, falando da minha adolescência. A gente tinha que viver as coisas e, ao mesmo tempo, falar daquilo. Primeiro amor, transas, conflitos...Viajamos o Brasil todo umas quatro vezes, era uma festa. Mas tínhamos que aprender horário, profissionalismo. Não queria estar em outro lugar, mesmo sendo a única desconhecida, já que todas as outras já faziam televisão.

As outras faziam Globo, né? É... E eu me sentia “a excluída” por causa disso. Meu nome não aparecia no jornal. Era Maria Mariana, Carol Machado, Patrícia Perrone e “outros”. Liguei pra um jornal do Rio e disse: “Queria pedir para vocês botarem meu nome”. E falaram: “Sabe o que é, a gente não pode mudar a diagramação, porque senão temos que tirar o preço”. Desliguei e pensei: “O-u-t-r-o-s [soletrando]. I-n-g-r-i-d. O mesmo tamanho”. Liguei de novo: “Olha só, então faz uma coisa? Bota ‘e Ingrid’, que já me adianta” [risos].

Eles mudaram? Riram da minha cara. Mas teve o lado bom de me descobrir como autora. O texto da toalha era superelogiado, e isso foi me dando segurança. Quando acabou Confissões, estava exaurida. Não tinha mais o que dar. Fui então fazer um curso livre na CAL [Casa das Laranjeiras], com o [diretor de teatro] Antunes Filho.

Como foi sua experiência com o Antunes? Aquele homem falava de coisas que eu nunca tinha ouvido. Ele mexia comigo, falava sobre física quântica misturada com budismo. Falava de cinema clássico, de Peter Brooke. Aquilo me encantou. O Antunes é o maior mestre da minha vida. E ele não dava bola nenhuma para quem fazia sucesso... Dizia: “Você mora no Rio, não vai poder estudar comigo em São Paulo, lá não vai ganhar dinheiro”. E eu: “Se você me deixar, eu vou”. Fiz o teste, com Bonequinha de Luxo e Nelson [Rodrigues], e passei.

Foi morar em São Paulo? Fui para o CPTzinho [escola de Antunes] e aquilo abriu a minha mente. Lia um livro por semana, ia todo sábado a galeria de arte. E ele viu em mim uma pessoa que fazia muito bem naturalismo. Confissões era quase um olharzinho na fechadura da porta. Três meses depois, ele me colocou para ensinar naturalismo, me deixava horas sozinha no palco com a turma, improvisando.

Nessa época você estava sem grana. Como se virava? Não tinha grana mesmo, meu pai me ajudava. Fiquei lá quase um ano, até que um dia meu pai falou: “Filha, chega! Esse homem te faz sofrer.Você está infeliz e eu não te pago mais!”. Estava branca, deprimida... Isso faz parte do trabalho do Antunes, essa destruição do ego, o que pra mim foi importantíssimo, já que vinha de um grande sucesso. Mas chegou uma hora em que eu resolvi sair mesmo, queria rir de novo, ser feliz.

Seu pai foi muito presente na sua vida. Como foi a perda dele? Um baque. Ele era um cara cheio de vida, malhava. Foi um choque aquele homem tão alegre morrer. Foi em agosto de 1999, por causa de uma doença chamada fibrose pulmonar. Ele só viu um pouco do meu sucesso. Brinco que ele morreu, encontrou com Deus e disse: “Já está na hora da Ingrid, dá uma força pra ela!”.

O que você fez depois que passou esse baque da perda? Na época eu ainda era bem dura e meu pai deixou uma herança. Ele sempre falava: “Filha, você tem que viajar, abrir a cabeça”. Pus uma mochila nas costas e fui sozinha para a Europa. Depois da viagem me veio uma força tremenda e eu resolvi que ia me dar bem de alguma maneira, pelo meu pai. Foi aí que resolvi escrever Cócegas. Estava desestimulada, não agüentava mais fazer testes, mas ao mesmo tempo não queria sair dos palcos.

Pensou em desistir da carreira? Nunca, imagina. Minha carreira tinha começado aos 16 anos e nessa época eu tinha 26, já tinham ido dez anos de ralação. Eu pensava: “Putz, será que não vai acontecer?”. Meu pai tinha morrido, eu ainda estava muito mal, precisava sair do Rio. Acabei indo para São Paulo, fazer um programa de sorteios na Band, o Poupa Ganha [risos]. Entregava carro na casa das pessoas nas favelas. Elas achavam que eu era Papai Noel, me abraçavam, rezavam por mim. E eu sentia um amor... Estava tão carente! E Lolô [Heloísa Perissé] pedia: “Me bota nisso aí!”, como se fosse um puta negócio. Pra vocês verem o nível que a gente estava... De qualquer maneira era uma graninha. E eu, com grana, sempre fui muito organizada, sempre investi de alguma maneira. Fui a única das meninas [do Confissões] que conseguiu comprar um apartamento.

E quando foi que “aconteceu”? Um dia falei: “Vou chamar a Lolô para fazer alguma coisa comigo. No mínimo vou me divertir com uma amiga”. Liguei pra ela de madrugada: “A gente tem um monte de personagem, vamos fazer esquetes pra empresas, podemos viver disso”. Juntamos R$ 400, pedimos para amigos nos dirigirem e estreamos no Cândido Mendes, no Rio. Fizemos a primeira apresentação para funcionários da TVA, e para o dia seguinte chamamos amigos. À noite, falei pra Lolô: “Você conseguiu angariar quantas pessoas?”.“Umas 25.” Ligamos para o produtor e dissemos que conseguimos 40. Ele disse: “Vocês estão loucas? Tem uma fila rodando a esquina”.Nós não acreditávamos.

Não teve divulgação? Nada. Foi um contando para o outro. É um fenômeno que não acontecia no Brasil desde O Mistério de Irma Vap [peça com Marco Nanini e Ney Latorraca que ficou 12 anos em cartaz]. Aí, na semana seguinte, lotado de novo. E detalhe: com a Barbara Heliodora, a crítica mais temerosa do Rio, na platéia. Ela é a crítica que faz ou não o sucesso de uma peça no Rio.

Vocês sabiam que ela estava lá? Sabíamos. Passamos muito mal. Quando acabou, nossa divulgadora contou que ela estava pensando em colocar na capa. No dia que ia sair, eu e a Lolô fomos à banca, até hoje o jornaleiro lembra disso, e perguntamos: “Que horas chega o jornal?”. “Às três da manhã.” Sentamos e ficamos esperando. Quando chegou, a gente tremia. E lá estava, metade a minha cara e metade a da Lolô: “A dupla do barulho”, dizendo que era a melhor coisa que ela tinha visto nos últimos tempos. Na semana seguinte o Jô [Soares] chamou a gente. A Embratel me ligou oferecendo patrocínio, imagina! Daí fomos para o teatro do shopping da Gávea, só dava para comprar ingresso um mês antes.

Foi a primeira vez que ganhou dinheiro? Ganhei no Confissões, mas dessa vez eu era autora, atriz e produtora. Compramos apartamento, carro, viajamos pra fora, uma loucura. Fiquei dos 28 anos aos 33 não querendo saber de mais nada: casar, ter filhos. Uma vez eu e Lolô fomos pra Paris e, workaholics doentes, decidimos montar algo para TV. Nos inspiramos numa briga que vimos num bar e viramos a noite escrevendo. Na volta fomos na Globo e falamos: “Temos um programa”. Na hora estava tendo uma reunião com todos os diretores e colocaram a gente pra fazer na frente deles.

Vocês fizeram? Sim! E eram os caras para quem tinha levado fita a vida inteira: Jorge Fernando, Wolf Maya, Guel Arraes, Denise Sarraceni... Saímos com o programa na mão [Sob Nova Direção]. Foi um sucesso, quatro anos no ar, tínhamos liberdade. Foi quando entrei na TV pela porta da frente.

E quando é que você quis saber de casar?Quando apareceu um homem que me quis muito. Ele pediu minha mão para minha mãe, foi uma choradeira. Estamos casados há dois anos. Ele é publicitário e artista plástico, René Machado. É carioca, mas nos conhecemos em Campo Grande, na época em que ele tinha uma agência lá. Durante um ano, vinha me ver a cada 15 dias. Depois deu vontade de casar, ter filho, quem sabe. Ele largou tudo, veio morar comigo, começou tudo de novo.

Depois de tanto tempo com a Lolô, você se cansou de trabalhar em dupla? É, senti uma necessidade grande de ser uma [risos]. Eu e a Lolô nunca quisemos ser O Gordo e o Magro. Aí inventei Mulheres Possíveis, inspirada no não-glamour da minha profissão. Nós não temos fim de semana, temos que estar bonitas o tempo todo, o marido tem que entender que o filho vai ficar com a babá porque você é de todo mundo... Não tem essa vida da revista! A minha empregada é mais glamorosa que eu, faz a unha toda semana, sai com um batonzão, escova, salto alto. Um dia perguntei: “Aonde você vai?”. E ela disse: “Pra casa”. Ela pega dois ônibus e uma van. Isso sim é glamour! Por isso a brincadeira com as mulheres possíveis.

Estilo Ana Hora Maquiagem Rita Fisher

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