Meu primeiro Natal

por Redação
Tpm #83

Depois de 25 Natais, quatro relacionamentos e uma infinidade de acontecimentos, minha vida ainda teima em fazer sentido

 
A regra era clara: eu não tinha autorização para entrar na cozinha. Tudo porque, segundo a matriarca, eu vim ao mundo equipada com a rara qualidade de provocar acidentes semifatais ali dentro. Ela, seguramente, tinha decretado a proibição depois de me flagrar protagonizando um evento constrangedor no ambiente agora a mim impedido e pelo qual, é preciso esclarecer, tive pouca culpa. Menos culpa do que a batedeira, como ficará evidente em instantes.

Era sábado à tarde e, como acontecia quase todo sábado à tarde, eu estava em casa sozinha: meu pai tinha ido ao Jockey, minha mãe ao supermercado e meus irmãos ao clube. Eu, que adorava ficar em casa, estava me entregando sem culpa à doce melancolia da solidão. Era uma época em que a vida não fazia muito sentido, uma época em que nada parecia interessante. Desse jeito, ia deixando que os dias passassem por mim, ia experimentando a existência em sua forma menos inspiradora: a da completa falta de sonhos. Escapar à infância sem conseguir entender o que estava por vir parecia duro demais.

Assim, arrastada por minha adolescência sem graça, tomei um banho lento e estava indo colocar meu disco do Cat Stevens na vitrola quando fui surpreendida pela vontade súbita de fazer suspiros, minha indulgência predileta. Dessas vontades estranhas que aparecem quando temos muito tempo para não fazer nada. Mesmo sabendo que a cozinha não era meu habitat, decidi arriscar. Qual o grau de dificuldade, francamente? Meu irmão, que tinha 9 anos, fazia suspiros e até bolos. Por que não eu, dona da sabedoria dos 15 anos?

Entrando de cabeça
Cabelos molhados, roupão de banho, Havaianas, esfreguei as mãos e parti rumo à missão. Clara e açúcar batidos à exaustão e alguns minutos no forno alto: de tão simples, o risco era praticamente negativo. Coloquei os ovos e o açúcar no recipiente e me armei da batedeira. Assim que liguei o equipamento entendi que, de fato, era tudo muito fácil. Comecei. Depois de alguns minutos esperando a mistura encorpar e levemente entediada com aquela bateção uníssona, achei que seria uma boa idéia cheirar a espuma. Foi quando levei minha cabeça em direção ao recipiente e não percebi que meus cabelos, que na época eram bastante longos, estavam invadindo a mistura. Nessa hora, sem emitir aviso, a batedeira se enroscou aos fios dos meus cabelos e começou a enrolá-los e a puxar minha cabeça, como um todo, para dentro do pote. Ligeiramente desnorteada, tentava desligar o eletrodoméstico, mas – muito provavelmente entorpecida pela dor que sentimos quando nosso couro cabeludo parece estar sendo arrancado da cabeça por uma batedeira em fúria e nossa respiração é sufocada por uma mistura semipronta de claras em neve – não conseguia achar o minúsculo e sempre embutido botãozinho do on-off. Finalmente, tive o bom senso de arrancar o fio da tomada, puxando-o com a força desesperada dos que entendem que se encontram em uma situação-limite. Exatamente nesse instante, minha mãe abriu a porta dos fundos, chegando com dezenas de sacolas de compras, e me viu com o rosto enfiado dentro de um utensílio repleto de espuma branca. Foi quando ela deu a ordem: não tinha mais autorização para entrar na cozinha. Especialmente sem ser supervisionada por alguém – e valia até ser por meu irmão minúsculo.

Foi assim que, no Natal que se seguiu ao acidente bizarro, eu fiquei confinada à sala. A cozinha passou a ser a nova fronteira; a sala era minha Tijuana, e a cozinha, a São Diego deles. Só cruzaria aquele muro de duas formas: se apresentasse um motivo excelente ou, mais arriscado, clandestinamente. Assim, enquanto todos estavam em São Diego ajudando com os preparativos da ceia, eu permanecia em Tijuana, completamente sozinha.

O gosto daquele Natal
Ao observador menos atento, eu poderia estar me sentindo excluída de minha própria família. Mas um fato novo havia se intercalado ao acidente da clara em neve e ao Natal daquele ano, e que me fez transferir por completo a obsessão por comida que eu experimentei até ali: eu estava apaixonada. E fazia menos de uma semana que tinha, pela primeira vez, beijado meu objeto de afeição – minha melhor amiga. A grande e fundamental fronteira da vida tinha sido por mim cruzada e ninguém lá da cozinha sabia. Por isso, sozinha na sala, me entregava ao devaneio de imaginar os beijos que ainda viriam. Nada sabia eu sobre discriminação, intolerância, preconceitos. Sabia apenas que estava apaixonada, que era correspondida e que não poderia haver muita coisa errada quando tudo o que você quer fazer é dar e receber amor de uma certa outra pessoa. Intuitivamente, entendia que o amor não poderia jamais ser classificado como equivocado e que o grande equívoco tinha que ser não amar. Depois de 15 anos, a vida, essa coisa tão estranha, tinha acabado de fazer sentido. Foi o Natal mais alegre de toda a minha existência.

Hoje, 25 anos e quatro relacionamentos depois, ainda tenho em mim o gosto daquela ceia. E, embora a matriarca continue a sentir calafrios quando me encontra na cozinha, já sou capaz de fazer, sem causar pânico, o macarrão com cottage que minha mulher jura ser o mais gostoso que ela já experimentou. E a vida, essa coisa tão estranha, todas as noites dentro da minha cozinha e ao lado do meu amor, ainda teima em fazer sentido.
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