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Paola Carosella: La Cocinera

por Natacha Cortêz
Tpm #159

A argentina firme e doce todo mundo vê no MasterChef. O que não aparece ali é sua dor e superação. Sem poupar a ninguém, nem a si mesma, se abre à Tpm

A cozinha foi a redenção de Paola Carosella. Quem vê a jurada mais sensível do MasterChef Brasil na TV ou quem conhece a culinária sem frescura de seus restaurantes não imagina como a escolha do seu ofício foi, na verdade, uma saída para um tremendo vazio emocional.

Essa história começa na Argentina dos anos 80. Paola aos 11 anos, se dividia entre a escola – onde se sentia estrangeira, com seu corpo "enorme" e a inadequação habitual dos adolescentes – e as tardes solitárias em um apartamento pequeno em Saavedra, na zona norte de Buenos Aires. Paola procurava se ocupar enquanto aguardava a mãe, que tinha dois empregos durante o dia e cursava a faculdade de Direito à noite. A menina começou a imitar receitas que via, veja só, em um programa de televisão - o fazia pra não sentir tanto a longa espera. Anos antes, em plena ditadura, Irma, a mãe, havia sido sequestrada, o que deixou ecos de pânico em Paola. Com a mesa posta e jantar ainda quente, imersa em sentimento profundo de medo e abandono, apenas esperava. “A cada minuto de atraso, me faltava o ar”, conta, com os olhos já inundados. “Eu ficava sentada no chão, com um olho na mesa posta e outro na porta.”

Paola não sabe dizer ao certo se um dia fez planos de ser cozinheira. Mas lembra de quando preparou seu primeiro prato, para quem foi e os destinos para onde ele a levou. A cozinha é seu céu particular, seu lar, sua fuga, sua fonte de renda, seu ativismo e seu laboratório criativo. É através de seus processos, ferramentas e ingredientes que pode ser exatamente o que quer. “Gosto da Paola que ves acá.”

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Hoje, são 24 de gastronomia. Trabalhou na sua Buenos Aires natal e também em Paris, Nova York e São Paulo, onde está há 14 anos. Embora a cozinha não fosse lugar para uma menina de classe média – “era um espaço de homens de baixo nível social”–, ela queria estar ali. “Pelas pessoas, pelo movimento, pelos cheiros. Tinha vida.” Ao longo da trajetória como cozinheira (ela gosta de ser chamada exatamente assim), encarou encoxada, faca no pescoço, jornadas insanas e o ego inflado de mestres como Francis Mallmann, o chef argentino que a levou para comandar a cozinha do restaurante paulistano Figueira Rubayat.

Luz na cara deles
Paola gosta de chamar o MasterChef de “talent show”, e não de reality show. Para ela, o programa é muito mais que entretenimento. “O MasterChef fala em respeitar a comida até o último pedacinho, fala de desperdício e da importância dos ingredientes frescos”, destaca. Paola acredita que ter a chance de refletir sobre isso pode mudar a percepção que os brasileiros têm sobre alimentação.

Depois de duas temporadas, o programa líder de audiência na Band (no ar às terças às 22h30) ganhou versão júnior em outubro e já virou polêmica. Paola escolheu o Twitter para se manifestar sobre a revolta contra a cultura do estupro que se seguiu à estreia do programa: “Pedofilia é crime. Denuncie. Denuncie. Denuncie. Denuncie. Denuncie. Denuncie. Denuncie. Disque 100. Grite. Acenda a luz na cara deles”, escreveu.
Aos 43 anos, está apaixonada. Seu namorado, o fotógrafo irlandês Jason Lowe, mora em Londres. Os dois trabalham juntos no primeiro livro dela com receitas, sem data para ser lançado. Encontram-se uma vez por mês. Parece ruim? Não para ela. “Estar perto o tempo inteiro deve ser insuportável.”

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Paola divide seu tempo entre o programa de TV, os cuidados com a filha, Francesca, de 4 anos (do relacionamento com um arquiteto argentino que vive em São Paulo), e a cozinha dos restaurantes Arturito e La Guapa. Depois de tantos anos metida entre colheres e panelas, hoje prefere se dedicar a pensar sobre o ciclo da produção e consumo de alimentos. 

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Na entrevista a seguir, a jurada do MasterChef fala sobre solidão, trabalho duro, nuggets, mão na bunda de garçonete, crianças mimadas e sobre como a simplicidade se tornou o principal ingrediente da sua vida.

Tpm. Você enfrentou preconceitos na gastronomia por ser mulher?
Paola Carosella. A cozinha era um ambiente de intolerâncias. E não as vivi apenas por ser mulher. Aos 20, fiz um estágio na França, em um restaurante de hotel. O meu francês era precário e meus companheiros de cozinha tinham zero intenção de me entender. Eram perversos. Certa vez, um deles não gostou de uma correção que fiz e me pegou na saída da cozinha, colocou uma faca na minha garganta e disse: “Sua filha da mãe, se você continuar dizendo o que devo fazer, te corto a jugular”. Fiquei assustada naquele momento, mas passou. Poucas coisas me abalam na vida.

Você já sofreu assédio? A forma como me posicionei impediu que eu fosse muito assediada [sexualmente]. Eu mandava calar a boca, me defendia. Mas, sim, assédio existe. De todo tipo: moral, físico. Lembro de uma vez na França, no Le Grand Véfour, onde o setor de pâtisserie era muito estreito. A cada vez que o chef passava, encostava em mim por trás. Até que perguntei: “O senhor consegue parar?”. Olha, se contar abusos como trabalhar 14 horas por dia sem parar e sem que ninguém te pague hora extra, então trabalhei a vida inteira sob assédio. Bem diferente do que faço com os meus funcionários.

E como você faz? Ofereço plano de saúde, vale-transporte, férias. Se os meus funcionários não se beneficiam com o meu benefício, não vale a pena pra mim. O bem-estar físico, psicológico e financeiro deles é uma condição pra mim.

Quero saber das suas origens, onde nasceu e cresceu. Nasci em 1972, na periferia de Buenos Aires. Sou filha de um italiano com uma argentina, neta de italianos dos dois lados. Meus avós foram para a Argentina após a Segunda Guerra. Cresci em uma casa simples, mas enorme. Havia ainda um porão, onde se guardava o vinho, o azeite e o vinagre feitos ali. No quintal, um pomar com pé de romã, limão, laranja e duas figueiras. Ao lado das parreiras havia uma horta com pimentão, tomate, cenoura, batata, abóbora e temperos. E, nos fundos, coelhos, galinhas e a cadela de caça do meu avô.

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Existe um cheiro que marcou essa época, uma memória olfativa? O do molho de tomate da minha vó, com pedaços de galinha ou coelho. Levava horas pra ficar pronto. Também me lembro das sardinhas assadas na brasa, recheadas com uma mistura com miolo de pão, leite, queijo parmesão, alho e pimenta. As primeiras lembranças de cozinha e do que ela representa aconteceram ali. Uma cozinha grande, onde o ritual era preparar os alimentos do dia, o lugar mais quente e acolhedor da casa. Mas tenho outra lembrança ainda mais intensa, que é a de quando comecei a cozinhar sozinha.

“As dificuldades da infância me ensinaram a lidar com as frustrações e a não sair correndo quando alguém quisesse me assustar”

Que foi quando? Preciso explicar desde o começo: meus pais se separaram quando eu ainda era bebê. Até os 2 anos, morei nesta casa enorme, dos meus avós maternos, com minha mãe. Depois, me mudei com ela para um apartamento na zona norte da cidade – e voltava à casa dos meus avós para passar os fins de semana. Minha mãe tinha 20 anos e decidiu estudar direito. A partir daí, fiquei muito sozinha. Até os 11 anos, tinha uma babá. Mas, depois, ficava sozinha mesmo. À medida que fui crescendo, a solidão que sentia foi pegando mais forte. Sem querer, sem saber, comecei a definir minha profissão. A cozinha nunca foi uma escolha consciente; ela era meu refúgio.

Onde sua mãe estava? Ela tinha dois empregos: era telefonista em um escritório de advocacia pela manhã e secretária em outro escritório à tarde. À noite, ia para a faculdade. Eu nunca sabia a que horas ela voltaria. Quando tinha 4 anos ela sofreu um sequestro-relâmpago, essas coisas que aconteciam na Argentina daquela época. Fiquei muito assustada. Não tínhamos telefone e eu não tinha notícias dela. E o que eu fazia para esperá-la era cozinhar. Tentava copiar as receitas de um programa que se chamava Utilíssima. [Paola chora] E cozinhava pra ela.

O que você cozinhava? Não lembro. Como foi uma época terrível, bloqueei da memória. Só me lembro de pôr a mesa e esperar. Eu não conseguia dormir de tão nervosa. Cada vez que ouvia o barulho do elevador, ia correndo ver se era ela.

Vocês eram bem próximas? Olha, eu amo profundamente minha mãe, e ela fez tudo pra que eu pudesse ter a melhor vida possível. Mas não éramos próximas. Ela vivia deprimida, trancada em seu quarto. Focou no trabalho e se tornou uma advogada bem-sucedida.

E seu pai? Não falamos nele ainda. O meu pai era um fofo, uma pessoa muito sensível. Porém, era um homem muito triste, diagnosticado maníaco-depressivo antes do meu nascimento. Só fui apresentada a ele aos 5 anos. Ele teve várias entradas e saídas da minha vida. Na verdade, aparecia quando podia, quando estava controlado. E sumia quando estava deprimido ou internado. Ao longo da vida, acho que nos vimos umas dez vezes no máximo. Parte da vida dele foi dentro de manicômios do Estado – o que era uma sacanagem, porque a família dele tinha dinheiro. Ele se suicidou em 2001. Hoje em dia, acho que viveria entre nós, “os normais”. Atualmente temos muito mais conhecimento para lidar com essas doenças. Mas, durante a juventude dele, não.

E você não tinha amigos na adolescência? Eu fazia parte de um grupo de quatro meninos nerds. Deixei as meninas de lado; elas andavam de minissaias e cabelos penteados – a conversa era chata. Com eles era mais divertido. Nunca gostei de escola. Eu era enorme, me sentia diferente, parecia de outra espécie. E sempre me achei muito feia.

E o que aconteceu quando a escola terminou? Disse à minha mãe que queria ser cozinheira. Com 18 anos tive meu primeiro emprego. Ela pagava US$ 100 por mês para que me deixassem trabalhar em um restaurante. E nessa época não existia isso de ser chef. Muito menos existia uma menina de classe média na cozinha. A cozinha era um espaço de homens de baixo nível social. Mas eu queria estar ali: pelas pessoas, pelo movimento, pelos cheiros. Tinha vida. Meu lar passou a ser as cozinhas dos restaurantes. Enquanto as pessoas esperavam a hora de ir pra casa, eu esperava a hora de ir pro trabalho.

Quanto tempo você ficou lá? Nove meses. Era um restaurante que servia fondue e raclete. E naquela época Buenos Aires tinha sete restaurantes. Pense, só sete! Os outros eram casas de empanadas, churrascarias e pizzarias. O chef era muito ruim. Mesmo assim, foi o primeiro que me aceitou. Até porque ele só trabalhava com mulheres. Ele dizia que as mulheres “expandem menos na bancada”. Mas a minha teoria é que, se tivesse homens trabalhando ali, ele seria esfaqueado, já que era insuportável.

O que mudou da Paola do começo da carreira, aos 18, para a de hoje, aos 43? As dificuldades da infância me ensinaram a lidar com as frustrações e a não sair correndo quando alguém quisesse me assustar. Ter falado pra mim mesma “eu vou conseguir, eu vou cozinhar” fez com que me contratassem em muitos restaurantes, me fez ser o braço direito de Francis Mallmann [chef argentino reconhecido mundialmente], depois chef do Figueira Rubaiyat, em São Paulo, com mil couverts por noite e 360 cadeiras. E eu não falava nem uma palavra de português! Aí sim me xingaram de tudo que você pode imaginar. Aí sim foi difícil ser mulher.

O Rubaiyat foi seu primeiro emprego no Brasil. Como foi trabalhar lá? No Rubaiyat, as únicas mulheres além de mim eram a faxineira e cinco garçonetes uruguaias superbonitas que o Francis trouxe como enfeite. Elas foram embora dias depois, porque não conseguiram lidar com a mão dos clientes e dos garçons na bunda delas. Estamos falando de um cenário de 14 anos atrás, era realmente outra coisa. E o restaurante deu tão certo que tivemos a ideia “genial” de fazer um turno à noite. Passei a dormir pouquíssimas horas. Eu saía às 23 horas, dormia até as 2 da madrugada. Entrava novamente às 2h10 e ficava até as 7 horas fazendo a produção: caldos, pães e mise en place [a pré-produção da gastronomia]. Ia pra casa e dormia até as 10 horas. Às 10h30 estava de volta ao restaurante. Isso durou um ano.

Como você começou a trabalhar com Francis Mallmann? Minha mãe era a advogada de Francis. Foi ela quem sugeriu que eu levasse um currículo e metesse as caras no restaurante.

E foi com ele que você aprendeu a gostar do fogo? Sempre gostei do fogo, muito antes de saber quem era Francis. Quando criança, uma das coisas que fazia enquanto esperava minha mãe era pegar uma panela, colocar jornal dentro e fazer uma espécie de fogueira. Eu gostava de ver as chamas, o fogo acontecendo diante dos meus olhos. E na casa dos meus avós se cozinhava muito com fogo, brasa e forno a lenha. Com 23 anos conheci o Francis e ele tinha toda essa escola do fogo. Aprendi o que sei de forno a lenha com ele. E foram sete anos lado a lado.

Mas pedimos uma foto sua com ele e você preferiu não dar. Tenho uma coisa com ele: profissionalmente, adoro, admiro, sinto saudades. Mas, pessoalmente, o nível de arrogância do Francis é difícil. Ele tem um puta talento, e mais, tem sonhos e uma capacidade inacreditável de fazê-los acontecer muito rápido. Tem características admiráveis, mas a única coisa que lhe importa é
eu umbigo.

Quem é a pessoa que você mais admira na cozinha hoje? Ignacio Mattos, um uruguaio chef em Nova York. Não conheço ninguém que cozinhe como ele. Ele flui quando trabalha. Não faz esforço.

E no Brasil? Não tenho conhecimento de alguém que realmente me surpreenda na cozinha brasileira.

A cozinha brasileira tomou os ingredientes locais como tendência. Você gosta deles? Gosto de comer os ingredientes brasileiros. Porém, não gosto de comida pretensiosa: usar o tucupi só porque é tendência. Agora, gosto de quiabo, maxixe, feijão, açafrão-da-terra, almeirão, mandioca... Não preciso de gelatina de tucupi.

“Gosto de comer os ingredientes brasileiros. Porém, não gosto de comida pretensiosa: usar o tucupi só porque é tendência”

Por que você decidiu ficar no Brasil? Cheguei ao país em maio de 2001. Quando o meu contrato terminou com o Rubaiyat, a Argentina estava passando por uma crise econômica e política muito séria, os meus amigos estavam indo embora de lá. Meus pais já eram falecidos [a mãe faleceu em um acidente em 1999, aos 47 anos]. Eu queria abrir o meu próprio restaurante e achei que São Paulo podia ser um bom lugar. Voltei para a Argentina, reuni as coisas que tinha, vendi a casa da minha mãe, o carro, e investi todo o dinheiro que dispunha no Brasil para conseguir o visto de investidora estrangeira: foram US$ 160 mil, a herança completa da minha mãe. Com isso, abri o Julia Cocina, meu primeiro restaurante, que deu errado por conta de divergências entre os sócios. Passei oito meses chorando. Meu telefone ficava uma semana sem tocar, vivi uma profunda solidão. Decidi viajar por quatro meses, pela América Latina e, na volta, abri o Arturito.

O que você não come de jeito nenhum? Tenho nojo de coisas industrializadas de péssima qualidade. Existem produtos feitos em contextos horríveis e têm texturas e sabores péssimos. Por exemplo, uma coisa é ketchup Heinz e outra é um ketchup de R$ 2. O que tem dentro desse? Uma coisa é moer em casa um peito de frango, empanar e fritar e outra é um nugget. Precisa comer nugget?

Mas algumas pessoas não têm escolha. Sim, não é todo mundo que pode ou consegue fazer seu próprio nugget ou comprar Heinz. Sei que é um assunto complexo.

De fato, é complexo. A carne, por exemplo, está no centro de uma grande discussão sobre sustentabilidade na produção. De onde vem a carne dos seus restaurantes? Você tem razão. A carne vem do frigorífico JBS: não é sustentável, é um gado que se alimenta de ração no fim da vida. A raça de boi que sempre tivemos no Brasil produz uma carne muito magra, dura, sem gordura intramuscular, que é tão importante para o sabor. Quando você cozinha, a gordura derrete e dá suculência. Há um tempo o Brasil começou a fazer uma carne melhor, brangus: uma mistura das raças nelore com angus. Com esse cruzamento genético, conseguimos carne com gordura intramuscular. Esse boi se alimenta de pasto dos 18 meses aos 24 meses, cerca de 70% da vida dele. Depois, é cercado – mas não trancado nem apertado – e passa a comer ração. Se deixassem ele só no pasto, nunca atingiria o peso ou a gordura necessária. Se você tem um boi parado por quatro anos comendo pasto – o que seria um sonho – precisaria vender o bife a R$ 700. Então entrei em uma questão ética complicada: ou não sirvo carne, ou sirvo uma que sei que não é politicamente correta. Eu não podia servir frango, arroz e salada.

É inviável ser sustentável na gastronomia hoje? Na brasileira, sim! Meu namorado vive em Londres. Ser politicamente correto em Londres é a coisa mais fácil do mundo porque você vai ter, sem dificuldade, opções de orgânicos baratos. Do frango à batata. Não adianta pegar as regras do primeiro mundo e tentar fazer igual aqui. A gente se mata, o governo não apoia, o setor privado também não. Eu sou a favor dos orgânicos, mas se não tem, se custa caro, sou a favor da couve da feira. Por isso me irrita profundamente quando jornalistas brasileiros elogiam o René Redzepi, do Noma [o restaurante dinamarquês que está entre os melhores do mundo], e escrevem: “Um cozinheiro que de fato faz alguma coisa”. Me dá vontade de socar o nariz deles! Claro, olha onde o René está? Na Dinamarca. Ele tem um governo que se importa e empresários investindo aos montes nos projetos dele.

Que alimentos você faz questão que sejam orgânicos nos seus restaurantes? Ovos, frango, o leite Leitíssimo – que não é orgânico, mas sei que é controlado – e o azeite. Mas as coisas estão mudando. Quem falava em queijo da Serra da Canastra há dez anos? Por que MasterChef faz sucesso? Porque está na hora certa. Gastronomia é tendência global.

O que é o MasterChef pra você? Pra mim, o MasterChef é cultural. Porque em um país como o Brasil, quando temos a chance de falar coisas como “dê valor ao ingrediente; entenda que esse sanduichinho que você está comendo veio deste bicho aqui”, as coisas mudam. E sempre digo: “Não choraminga, não me envia e-mail dizendo que a gente tranca um porco em um estúdio de TV enquanto você come apresuntado”. Precisamos, sim, dessa educação. Ninguém ensina cozinha nas escolas, só nas de elite. E deveriam; pra ontem. Porque todo mundo deveria saber cozinhar.

E você acredita que o MasterChef faz isso? Sim, porque ele lembra da conexão entre o alimento e o animal, fala de desperdício, da importância dos ingredientes frescos e da simplicidade. Em um mundo onde tudo é rotulado como gourmet, existe um programa em que três chefs reconhecidos dizem: “Gourmet não me interessa”. Isso é forte! Não é que vá convencer o paulistano moderno, mas mostra para o cara do interior do Brasil que arroz e feijão são maravilhosos quando bem-feitos. São três chefs ali na TV dizendo que seria ótimo se todos plantássemos nosso próprio alimento. Acredito que quem tem 2 metros quadrados de terra nos fundos de casa vai parar para pensar. E se tem algo hoje que está em um nível de alerta, é o que estamos comendo e como isso afeta a nós e ao mundo.

Você tem um projeto com pequenos produtores, conta o que é. Ainda estamos no começo, mas queremos juntar esses produtores que existem em Parelheiros, no extremo sul da cidade de São Paulo. Lá tem muita agricultura familiar. Queremos transformar o lugar num polo de produção orgânica para que os restaurantes de São Paulo possam ser compradores.

Como você foi parar na televisão? A empresa dona do formato, Eyeworks, fez um casting [pré-seleção para programas de TV] com vários chefs, eu estava entre eles. Fizemos entrevistas, gravamos vídeos no restaurante. Quando o convite apareceu, fiquei reticente.

Por que aceitou, afinal? Veja: eu comprei uma TV por causa do MasterChef, não tinha o aparelho em casa antes. Não ambicionava estar na TV, nunca imaginei a projeção que ela me traria. E essa projeção me surpreendeu positivamente, porque posso usar minha influência para educar as pessoas. E isso de uma maneira leve e divertida.

Como é seu relacionamento com os jurados? Jacquin, Fogaça e Ana Paula viraram amigos queridos. Com Fogaça tenho uma cumplicidade; com Ana uma coisa de mulher, um entendimento.

E sobre o MasterChef Júnior, você permitiria que sua filha participasse se tivesse idade pra isso? Eu teria que ter uma filha de pelo menos 8 anos pra saber. Francesca ainda tem 4. Quando me convidaram para o Júnior, claro que eu pensei: “Meu Deus, são crianças. E agora, como vai ser?”. Estamos indo com todo o cuidado. Tem algo no programa que eu gosto especialmente: as crianças têm que lidar com frustração. E a vida é isso, a vida é cruel. Sofremos repressões e opressões aos 4, aos 15, aos 29, aos 43.

“Tem algo no masterchef júnior que eu gosto especialmente: as crianças têm que lidar com frustração. e a vida é isso, a vida é cruel”

Mas ali é frustração televisionada. Mas penso: às vezes o fato de ser televisionado faz com que a menina que sofre bullying na escola não se sinta tão sozinha. E fazer um programa no Brasil em que crianças estão cozinhando traz uma lista de coisas boas muito maior que a de coisas ruins. Reveja. O que estamos fazendo com as nossas crianças no sentido de poupá-los de tudo... eu não concordo. Elas não podem se cansar, não podem competir, não podem sofrer, não podem esperar, sempre é preciso ter uma aguinha de coco na mochila. Isso está criando uma geração de estúpidos que não vai fazer a mínima ideia de como lidar com frustrações quando elas realmente chegarem. Porque elas chegam. E para todo mundo.

Pensa em ter mais filhos? Gostaria, mas já passou a hora. Ter um filho é um tsunami e você precisa se dedicar a ele. Estou muito dedicada a outras coisas. E minha filha é genial, amada e já me ocupa muito.

Seu namorado mora em Londres: como é o relacionamento a distância? Nos vemos mais ou menos uma vez por mês. Tem a ver com vontades, possibilidades e projetos. Pode ser a cada 4 semanas ou 2 meses juntos, como no último verão. Agora temos uma casa juntos e ele vai passar mais tempo aqui. Quando estamos separados, mando selfie e fotos corriqueiras, como a da camisa nova que comprei. Eu gosto muito de Jason.

Pretende casar? Não acredito no casamento como é imposto. Acho que esse modelo é pra pouquíssimos e iluminados. E não sou uma dessas pessoas. Entretanto, acredito no amor e na parceria. Acredito na união de pessoas que se escolhem porque querem, não porque precisam. E, sim, eu gostaria que o relacionamento que tenho agora durasse a vida toda.

Você está rica? Não! Não tenho casa própria, dirijo um Peugeot 2007 – que, aliás, está na oficina. Mas vou te falar o nível da minha riqueza: eu pago uma escola cara pra minha filha, pago um aluguel nos Jardins [bairro paulistano de elite]. Mas não tenho poupança nem herança. Nenhum dos meus restaurantes é em imóvel próprio. Todo o lucro vai para o banco, para pagar dois empréstimos – que quito em 2016.

O que mais incomoda você na fama? Não sei o que é ser famosa.

Você está na Band, horário nobre, primeiro lugar da audiência da emissora... Olha, tenho uma vida muito na moita. Não saio de casa. As pessoas me reconhecem na rua, me pedem pra fazer foto e tudo. O que me incomoda não é tirar as fotos ou encontrar as pessoas, o que me incomoda é perder o anonimato, porque gosto desse escuro. Detesto não poder mais estar triste. Parece proibido.

“Incomoda perder o anonimato porque gosto desse escuro. detesto não poder estar triste”

O que falta pra você? Tem algum lugar aonde ainda quer chegar? Falta tudo e quero chegar em muitos lugares! À boa carne, ao orgânico acessível, ao incentivo do governo ao pequeno produtor... Quero lançar o livro, tocar o projeto de Parelheiros, fazer a terceira temporada do MasterChef, cuidar da minha filha. Mas não gostaria de abrir mais restaurantes. Agora, quero olhar pra trás: ter certeza de onde vem tudo aquilo que consumo.

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