por Milly Lacombe
Tpm #159

Ele foi meu primeiro contato com o poder da descendência. Filho de minha irmã mais nova, veio ao mundo para nos ensinar sobre maternidade, paternidade, sobre ser avó e, no meu caso, sobre ser tia

Para comemorar seu aniversário Paulo resolveu ir para a casa da família no interior de São Paulo durante o feriado de 12 de outubro. Fui convidada a me juntar a eles com a frase: "Vamos a gente [eles eram meu cunhado e meus sobrinhos, totalizando cinco almas] e uns amigos do Paulo". Achei que seria divertido e decidi ir sem ter a mais vaga ideia de que "uns amigos" eram 11 amigos. E foi assim que passei meu feriado numa casa com 12 rapazes cujas idades variavam entre 22 e 24 anos.

No sábado de manhã já ficou claro que seriam dias cheios de atividades. Logo depois do café eles resolveram ir jogar bola num campinho improvisado na frente da casa. E, ainda que jogar bola pudesse ser considerado um passatempo, não era esse o passatempo predileto daqueles meninos, que pareciam se divertir mesmo quando estavam se estapeando. A cada 15 minutos era um que apanhava, e minha vontade era ir lá e mandar que eles parassem com aquilo, mas eles continuavam a rir, então deixei para lá.

Na piscina os assuntos flertavam sempre com o bullying entre eles mesmos. E havia também um revezamento de bullying, o que de certa forma era menos injusto. Eu estava ali esperando que começassem a encher o saco de Paulo porque nesse caso ia pagar de tia doida, mas na minha presença eles se comportaram, até porque a maioria já me conhecia e sabia da capacidade que tenho para pagar de tia doida; Paulo e seus 11 amigos se conhecem desde o primário, por isso eu já tinha frequentado alguns deles.

Fiquei imaginando como seria um fim de semana com 12 moças de 23 anos e entendi que no primeiro flerte com aquelas agressões que eu estava testemunhando alguém ficaria profundamente magoada e haveria, a partir disso, muitas DRs, que seriam o passatempo do fim de semana. Enquanto isso os rapazes continuavam a se socar e a se agredir verbalmente entre um e outro jogo de bola.

Sábado à noite fizemos uma festa com música alta, muita bebida e piz-zas. Todos ficaram levemente (ou bastante) bêbados e nessa hora as agressões aumentaram de proporção. Eles se alternavam entre pontapés, murros e danças nas quais se abraçavam e riam. Eu continuava assustada e perguntei a Antonio, irmão de Paulo que fez 20 anos em março, se aquilo era normal, e ele me disse rindo que era uma forma de demonstrar amor. Uma forma dolorida, verdade, mas talvez Antonio estivesse certo.

Havia entre aqueles homens um tipo de camaradagem e admiração mútua que quando conseguia transcender a estética dos murros e dos pontapés ficava cheio de beleza. Se é apenas através do outro que podemos nos reconhecer, já que o desenvolvimento de cada um de nós determina o desenvolvimento de todos nós, eu estava testemunhando homens em desenvolvimento. Ou, como escreveu Schopenhauer, se existir é ser percebido, aqueles meninos, a cada murro e a cada pontapé, estavam existindo. Para continuar com o filósofo alemão, cada um de nós e o outro somos dois aspectos de uma só vida, e a aparente separação é resultado do modo como experimentamos as formas, sob limitações de tempo e espaço. Nossa verdadeira realidade reside em nossa identidade e unidade com a vida total.

Me parecia, assim, que havia naquelas doloridas demonstrações de afeto um entendimento, mesmo que inconsciente, do que escreveu Schopenhauer. E talvez o excesso de admiração e carinho e respeito, no caso de rapazes entrando na vida adulta ainda de forma desajeitada, se manifeste desse jeito destrambelhado e precise de uma caixa de primeiros socorros por perto.

No auge da festa, enquanto todos pulavam e dançavam no meio da sala como se comemorassem o gol do título do time do coração, Paulo se desvencilhou deles, me viu no sofá, apontou para mim, abriu os braços e me chamou para dançar. No meio da pista improvisada eu o agarrei como agarraria uma boia depois de um naufrágio em alto-mar. Minha cabeça descansava em seu peito, que é onde minha cabeça bate nele hoje, e a vontade era não deixar ele sair de perto e poder para sempre protegê-lo da dureza da vida e dos murros dos amigos; e a noção de que não pode ser assim é ao mesmo tempo devastadora e linda.

No dia seguinte estavam quase todos mancando e não havia quem estivesse sem pelo menos um hematoma medonho nas pernas, nos braços, na barriga, nas costas. Eles já não lembravam mais quem tinha batido em quem, mas estavam encantados com as marcas roxas e vermelhas nos próprios corpos.

Paulo nasceu no dia 9 de outubro de 1992. Foi meu primeiro contato com o poder da descendência. Filho de minha irmã mais nova, veio ao mundo quando ela tinha 20 anos, e meu cunhado, 24. Paulo chegou para nos ensinar sobre maternidade, paternidade, sobre ser avó e, no meu caso, sobre ser tia. E, ainda que depois dele tenham vindo outros oito descendentes, Paulo foi a pessoa inaugural em relação a infinitas novas sensações de amor que me invadiram. Não é exatamente que eu goste mais dele do que dos outros oito, é apenas que gosto dele há mais tempo.

A carioca Milly Lacombe já exercitou a paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com

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