Não se esqueçam dos dias que passamos juntos

por Milly Lacombe
Tpm #158

Quanta riqueza existiu naqueles dez dias durante os quais me permiti sangrar e morrer em público. Como foi importante me enxergar fraca e vulnerável e cheia de medos

Paola vive me metendo em roubada. Depois de me levar para a Amazônia, me fazer dormir em rede e comer uma dieta de grãos por quase uma semana – ela me vendo sofrer pelo fim do relacionamento –, sugeriu que eu fizesse um curso de autodescobrimento. "Nem fudendo", foi minha primeira reação, como de costume. Mas Paola é resiliente, ou não escuta muito bem o que eu digo, e voltou a falar no dia seguinte, e no outro e no outro. Eu de fato não tinha muito a perder. Vagando entre a casa de minha irmã e a de minha mãe até encontrar um lugar para morar, sem saber o que fazer da vida e sem entender muito bem quem eu era – porque um relacionamento de dez anos acaba pregando essa troça na gente na medida em que você se reconhece através do olhar da outra pessoa e isso parece bastar –, decidi tomar coragem e encarar a aventura do autodescobrimento.

Lá fui eu para o curso. Cheguei cedo porque estava um pouco nervosa e fiquei ali com a sensação de "primeiro dia de aula", esperando para ver quem seriam meus coleguinhas e com quem acabaria interagindo. Seriam dez dias, quatro horas por dia com uma imersão de sexta a domingo no meio. Seria, portanto, uma pancadona. E eles foram chegando, os meus colegas. Em questão de segundos pude detectar perfeitamente quem eram aquelas pessoas, e a roubada na qual Paola havia me metido: tinha a fresca, o filhinho de papai, o chato, o pimpão, o mimado, a vítima, o capitalista egoísta, a falastrona, a reclamona… Seriam dez longos dias, pensei.

Mas aí o inimaginável aconteceu, começamos a sangrar e nos dilacerar em público, nos entregamos uns aos outros e pudemos nos ver como de fato somos: crianças que tentam sobreviver e ser felizes neste mundo tão cheio de expectativas e tão cruel. E as máscaras foram caindo uma a uma – a minha inclusive.

Já no segundo dia ficou bastante evidente que estavam ali 17 outras pes---soas que, a despeito das aparências e das roupas quase todas muito finas e caras, estavam lutando uma batalha dura, entrincheiradas em suas crenças, vestindo fantasias de super-heróis que acabam escondendo nossa beleza e nossa força. Carcereiros de nós mesmos, amedrontados pela força dos sonhos que carregamos. E quando pude ver cada um deles de verdade, sem as máscaras, uma coisa incrível se deu: eu me apaixonei. Me apaixonei por todos. Me apaixonei pela história de cada um, pelas dores, pela tristeza, pela luta, pela sinceridade, pelas lágrimas, pelo pranto, pelo olhar e pela alma.

Porque se no começo éramos todos fodões e seguros de nós mesmos, tentando passar para aquele grupo de desconhecidos uma imagem sólida de sucesso e de força, assim que o primeiro topou tirar a fantasia, os demais tiveram coragem de fazer a mesma coisa. E eu entendi que existe na vulnerabilidade um tipo de beleza que supera todas as outras. A perfeição não é sedutora porque ela é irreal, e no fundo a gente sabe disso. Numa época em que "ser feliz" virou commodity, na qual Facebook e Instagram encorajam que compartilhemos com os outros todas as maravilhas, perfeições e riquezas de nossas vidas, estar desprotegido, indefeso e amedrontado são características desprezíveis. É fundamental parecer bem-sucedido, pleno e não ter dúvidas, apenas certezas.

E enquanto eu enxergava aquelas pessoas todas ficando completamente vulneráveis na minha frente percebi que o amor nasce daí porque é a dor que nos une e nos faz entender que somos partes de uma mesma coisa, feitos da mesma luz que acendeu as estrelas. A experiência de estar vivo é sofrida e envolve inúmeras perdas, mas a recompensa é ter coragem para mergulhar em si mesmo, enxergar os lugares mais feios e sombrios que existem dentro da gente e deixar que a criança amedrontada cresça e amadureça. Não é fácil, mas é importante. Morrer é doído, mas renascer é lindo, e essas viagens para dentro de nós mesmos começam com a morte da pessoa que fomos. Quanta riqueza existiu naqueles dez dias durantes os quais me permiti sangrar e morrer em público. Como foi importante me enxergar fraca e vulnerável e cheia de medos. Como foi bonito me deixar ser ajudada.

Acho que a sensação de gratidão que terei com todas aquelas pessoas vai nos ligar por muito tempo ainda. Não sei o que vai ser da gente, nem como enfrentaremos este mundo cheio de regras e julgamentos vestidos de nossos novos ‘eus’, mas sei que vou amar todos eles para sempre.

Queria agradecer aos meus 17 companheiros de aventura o colo, o ninho, o carinho, o afeto, e pedir desculpas por ter recorrido ao julgamento precoce e covarde. Queria agradecer à oportu-nidade de enxergar com tanta clareza que somos feitos de uma mesma substância e como estamos tão profundamente ligados uns aos outros. Mas acima de tudo queria pedir que vocês nunca se esquecessem de como são grandes, fortes e imperialmente lindos. Vocês são todos muito lindos.

Obrigada pela chance de poder me despir e me revelar para vocês. E que essa jornada seja gentil e doce com todos nós porque chegou a hora de deixar para lá a vida que planejaram para a gente e de começar a viver a vida que nos espera.

"A caverna na qual você teme entrar guarda os segredos que você busca", escreveu J. Campbell. Que tenhamos acessado nossas cavernas e voltemos de lá com o que vai nos engrandecer e agigantar. E que consigamos colaborar para a construção de um mundo onde sejamos, como sonhou a anarquista Rosa Luxemburgo, socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres.

Vocês são enormes e vocês podem tudo, nunca se esqueçam disso; nem dos dias que passamos juntos.

A carioca Milly Lacombe, 46 anos, já exercitou a paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu cubículo em Nova York, onde foi passar uma temporada com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com

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