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Sobre mulheres e barcos

por Natacha Cortêz
Tpm #153

Uma equipe exclusivamente feminina disputa ao lado de seis masculinas na mais importante e longa prova de vela oceânica do mundo

As mãos da holandesa Carolijn Brouwer, 42 anos, têm muitas dobrinhas – no dorso, são como rugas – e estão pintadas de sardas ruivas. Uma porção delas. Uma penugem loira e abundante começa em suas bochechas e cobre o resto do corpo, que parece ter uma textura áspera. É como se a pele tivesse se adaptado às condições as quais Carolijn se submete há pelo menos 30 anos. O sol, a água salgada, o frio congelante de madrugadas ao relento e o vento veloz são os responsáveis pela casca que carrega.

Carolijn veleja desde a infância, quando morava no Rio de Janeiro, incentivada pelo pai, um entusiasta do esporte. Profissionalmente, ela nunca fez outra coisa. É velejadora desde os 13 – idade comum para iniciar na atividade. Hoje, integra o Team SCA, a única equipe de mulheres da Volvo Ocean Race, a mais importante e longa competição de vela oceânica do mundo, que há 12 anos só tinha times masculinos.

Suas companheiras de equipe (Dee, Liz, Justine, Sophia, Elodie, Sam, Abby, Sally, Sara, Annie e Stacey) também nutrem um fascínio ímpar pelos oceanos e por competições. Para essas mulheres, estar na Volvo Ocean Race é um momento especial de suas carreiras.

Com sua primeira edição em 1973, a regata propõe uma volta ao mundo em nove meses. Na Volvo Ocean Race 2014-2015, sete equipes, sendo seis masculinas e uma feminina, passam por quatro oceanos (Atlântico, Pacífico, Índico e Austral) e velejam 38.739 milhas náuticas, ou 71.745 quilômetros. São também nove paradas, cada uma em uma cidade diferente. Saindo de Alicante, na Espanha – isso em outubro do ano passado – e passando pela Cidade do Cabo (África do Sul), por Abu Dhabi (Emirados Árabes Unidos), Sanya (China) e Auckland (Nova Zelândia); pela brasileira Itajaí (Santa Catarina), por Newport (Inglaterra), Lisboa (Portugal), Lorient (França) e, por fim, Gotemburgo (Suécia), em junho deste ano.

Entre cada porto, as equipes ficam uma média 25 dias em alto-mar, à deriva do clima hostil, velocidade do vento, “humor marítimo”, além da umidade constante, privação de sono, pouquíssimas roupas e comunicação restrita com o resto do mundo – cada integrante pode enviar três e-mails semanais. Em suas jornadas, a natureza é quem dita as regras. Mas não no corpo, as atletas tomam pílula continuada ou injeções pra não menstruar durante a corrida. Em uma prova de alta performance como a VOR, menstruar seria um contratempo.

"Há pouco tempo, não existiam mulheres nas velas nas Olimpíadas, um passo importante para capacitar velejadoras para a volta ao mundo. Agora, o cenário começa a mudar aos poucos. Espero que no futuro as oportunidades sejam iguais” - Torben Grael

A etapa de Auckland até Itajaí, por exemplo, passou pela região mais remota do mundo, considerada também a mais difícil. O percurso leva os barcos perto do Ponto Nemo, no Pacífico Sul, onde o sinal humano mais próximo pode ser encontrado nas estações espaciais que patrulham a Terra. Depois, os veleiros retornaram ao Atlântico, quando passaram pelo Cabo Horn, na ponta da América do Sul. Esse é o trecho mais aguardado. O local é um marco, apesar de já ter feito muitas vítimas. Por lá, as ondas podem atingir até 30 metros de altura."

Em pé de igualdade

Até a perna de Itajaí, o placar geral da Volvo Ocean Race apontava uma vantagem confortável para o Abu Dhabi Ocean Racing, barco dos Emirados Árabes Unidos e o favorito na regata. O Team SCA terminou a perna em sexto lugar. Segundo o técnico da equipe feminina, o brasileiro Joca Signorini, para as meninas, agora, o mais importante é acumular experiência. “O mais legal é ver o avanço delas não só na regata, mas também na preparação. Iniciamos o trabalho há dois anos, e se você comparar a maneira como velejavam e como estão velejando hoje, percebe que a mudança é da água para o vinho.” A próxima e quinta etapa da VOR terá 12.549 quilômetros. Será a mais longa e desgastante.

“Em 12 edições e 41 anos de existência, a regata teve a participação de apenas 4 grupos femininos”, diz Torben Grael, o mais importante atleta brasileiro, e um dos maiores do mundo em competições de vela. Desde 2001-2002, a prova se mantinha exclusivamente formada por equipes masculinas e mistas – estas, uma raridade. Depois de um hiato de 12 anos, o Team SCA chega formado exclusivamente por mulheres. São 11 atletas e uma jornalista a bordo, que tem o papel de documentar, fotografar e filmar a jornada. O grupo Amer Sports Too foi o último 100% feminino, em 2001-2002. Na equipe de agora, há três atletas que eram integrantes do Amer: Abby Ehler, Liz Wardley e Carolijn.

Torben participou do treinamento do Team SCA em sua primeira etapa, em Alicante. “É fundamental termos essa equipe. Há pouco tempo, não existiam, por exemplo, mulheres nas velas nas Olimpíadas, um passo importante para capacitar velejadoras para a volta ao mundo. Agora, o cenário começa a mudar aos poucos. Espero que no futuro as oportunidades sejam iguais”, diz.

Para competir em igualdade, a VOR estabeleceu em seu regulamento que a equipe de mulheres deveria ter três integrantes a mais que as masculinas. Enquanto os homens velejam em grupos de oito atletas e um repórter, elas estão em 11, mais a repórter. Segundo a organização, a regra garante igualdade de condições às mulheres. “O peso médio de uma mulher normalmente é mais leve que o peso médio de um homem. Ter mais gente foi a forma de equiparar essa desigualdade física”, diz Joca Signorini. Para ele, a maior dificuldade na formação de sua equipe foi encontrar atletas capacitadas, 400 velejadoras passaram por sua seleção. “Em uma equipe masculina, é muito comum que a maioria esteja em sua terceira ou até mais participações seguidas. É desigual nesse ponto”, diz. Carolijn minimiza as diferenças entre gêneros e afirma que quer ser vista apenas como mais uma na disputa. “Uma vez que estamos na água e competindo contra eles, queremos ser tratadas somente como competidoras.”

“Uma vez que estamos na água e competindocontra eles, queremos ser tratadas somente como competidoras”

Patrocinado pela sueca SCA, uma empresa de produtos florestais e de higiene pessoal, o time é um projeto da marca. “Talvez a Ocean Race seja o evento de vela mais difícil do mundo. Para nós, a competição trata da criação de uma equipe de alto desempenho, de cooperação e de esforço. Há 12 anos nenhuma equipe feminina participa dessa corrida. Queremos deixar um legado para as mulheres na regata”, explica a diretora de comunicação da empresa na América Latina, María Salceda.


Em alto-mar


O Volvo Ocean 65 é o barco da competição. As sete equipes da regata usam o mesmo modelo, só apresentam cores diferentes, de acordo com cada patrocinador. Esta é primeira edição em que os veleiros são padronizados. O norueguês Knut Frostad, CEO da competição, disse em entrevista coletiva que a decisão, além de baratear a regata, coloca ênfase nas capacidades humanas, no desempenho das tripulações, e não no projeto dos barcos. Logo, a estrela da regata, afirma, é o atleta. 65 pés é o tamanho da embarcação, que pode chegar a 70 quilômetros por hora. Para registrar cada movimento de seus tripulantes, cinco câmeras estão instaladas entre popa e convés. Há cerca de 500 quilos de suprimentos dentro do barco, além de velas que pesam em torno de uma tonelada.

De luxo a cabine não tem nada. Tudo nela, assim como no restante do barco, é construído para agilizar manobras e trazer praticidade para os ocupantes. Não existem cômodos no compartimento e as camas são como redes. Na hora de dormir, todos têm que usar cintos de segurança, por conta da movimentação constante. Em relação à bagagem pessoal, no Team SCA cada uma leva uma muda de roupa, produtos de higiene pessoal e um iPod, mais nada. “Não faz nem sentido levar outras coisas. Não dá tempo pra fazer nada a não ser velejar e descansar”, conta a sueca Justine Mettraux, que diz sentir falta mesmo é de banho. Em alto-mar, banhos são inexistentes. A higiene é feita com lenços umedecidos e spray de água mineral.

A comida é um capítulo à parte. Não há nada parecido com uma cozinha, apenas uma espécie de pia minúscula. O cardápio vai de frutas secas, vitaminas em cápsulas e barras proteicas até macarrão à bolonhesa e frango ao curry. Todo alimento é desidratado e congelado e, com algumas gotas de água fervente, parece ter acabado de sair da panela. “O gosto não é dos melhores, mas são alimentos altamente energéticos”, diz a norte-americana Sally Barkow, 35, que além de velejadora é a médica a bordo.

Os turnos de trabalho no barco das garotas são de 4 horas de convés e 4 de descanso. Isso se tiverem sorte. “Se passamos por áreas turbulentas, a maioria vai pro convés, para ajudar”, conta Sally. Por causa do extremo esforço físico que a regata exige, o time todo acaba perdendo peso. A média por pessoa é de 3 quilos por perna de prova. No entanto, durante as paradas em terra, esse peso geralmente é recuperado. Ao fim da competição, cada integrante perde de 8 a 10 quilos. Além do desgaste físico e das horas sem sono, há a solidão do mar. Solteira e sem filhos, a australiana Liz Wardley diz que ser uma “mulher sem vínculos” nessas horas deixa tudo mais fácil. “Minha cabeça fica totalmente em alto-mar.” Já Carolijn deixou marido e filhos em terra firme. E é essa sua maior saudade. Porém, em cada parada, ela encontra a família. Acontece assim com cada competidor da VOR. Suas famílias seguem a regata nos nove meses de competição. Além da holandesa, outras duas são mães, a capitã Sam Davies e Abby Ehler. Eloide-Jane Mettraux, 31, e Justine Mettraux, 27, são irmãs. Dessa vez, pela primeira vez na história da competição, uma familia está a bordo. “Saber que Eloide está ao meu lado é confortante, claro. É pra ela que corro nos piores momentos”, conta Justine, com um sorriso, os cabelos ao vento, e o mar, imenso, por todos os lados.

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