Toda caretice de uma vida lésbica

por Milly Lacombe
Tpm #151

’’Eu não sabia que ser dona de casa me agradaria tanto, talvez porque o que me agrada mesmo não é exatamente ser dona de casa, mas ser dona da sua casa’’

O despertador toca às 6h15. Você desliga sem abrir os olhos e seus pés procuram os meus pela cama. Percebo que existe um movimento sob os lençóis e deixo meus pés ao alcance dos seus na esperança que mais partes de nossos corpos se encostem. O snooze faz soar outro alarme às 6h20, e agora você, ainda sem abrir os olhos, finalmente quer outras partes de meu corpo, e eu chego um pouco mais perto. Pegamos no sono quase coladas até que o novo alarme nos acorda. Você estica um pouco o braço e abre a porta do quarto, um sinal que as cachorras na sala entendem como “podemos ir”. Ouço as patinhas tocando o chão e sei que tenho segundos para garantir meu espaço na cama antes que elas pulem sobre nossos corpos e reinem. Em manobra estranhamente ágil para aquela hora do dia, me livro de todos os travesseiros entre a gente, me encaixo em seu ombro e espero pelo impacto das cachorras, que acontece em seguida. Juntas e misturadas, dormimos mais um pouco, até que você abre os olhos e pega o celular para desligar o snooze. Eu ainda durmo, mas tento acompanhar o que me parece ser o começo de uma conversa. Você fala um pouco sobre como vai ser seu dia, faz alguns comentários genéricos, às vezes sobre pessoas que conhecemos, enquanto coça minhas costas. A gente se beija, se abraça mais forte, se mexe e se encaixa até que você, vendo a hora, diz que não podemos mais enrolar assim todos os dias. Você vai para o banho, as cachorras vão atrás, e eu, depois de lavar o rosto, vou fazer o café. Calculo o tempo do banho perguntando antes se você vai ou não lavar o cabelo. Se vai, coloco 10 minutos a mais porque seus cabelos são muito longos e volumosos. Preparo um copo de água com limão, que obrigo você a tomar desde que li que água com limão equilibra o PH, separo as vitaminas e coloco a mesa. Quando ouço o chuveiro ser desligado, esquento a frigideira, jogo um pouco de manteiga e dois ovos nela. Eles ficam prontos, mas você não. Peço que venha comer para não esfriar e você diz do quarto “já vou”. Por sua definição de “já” entendo que percebemos o tempo de maneira muito diferente. Impaciente, repito o chamado. Você grita “eu já vou”, e dessa vez vem mesmo. Enquanto você come, eu me troco para ir à ioga esperando você dizer “que ovo bom”. Eventualmente você diz, mas quando não diz eu pergunto e você então diz. Ver você comer me dá muito prazer e minha vontade é sentar e olhar, mas as cachorras deixam claro que não aguentam mais e precisam ir fazer coco e xixi. Eu desço com elas.

Volto e você já está se maquiando. Digo que você está linda, você ri, agradece o café da manhã enquanto me beija antes de colocar o batom. Pegamos o elevador juntas, andamos até a esquina e nos separamos.

Saio da ioga, tomo café da manhã no meu restaurante predileto e vou ao supermercado comprar o jantar. Escolho carne, porque sei como você ama carne, e aspargos, mas poderia ser salmão e brócolis, ou salada de atum ou uma sopa. Estamos tentando não comer muito à noite, mas não conseguimos abrir mão do vinho.

Volto para casa, coloco o jantar na geladeira e vou arrumar a cama. Tomo um banho, separo as roupas que devem ser lavadas, dou conta da louça do café, guardo a louça limpa do jantar de ontem, desço outra vez com as cachorras, faço um chá e abro o escritório, que fica num canto da sala e é formado por uma parede de livros, uma mesa pequena que você montou para mim, e um computador. Trabalho de frente para a parede, o que não é muito recomendado pelo feng-shui, mas você colocou nela um pano enorme com uma ilustração do mapa-múndi, muito bonito, aliás, e parece que isso equilibra as energias.

Te espero

Leio alguns sites, tuíto algumas besteiras, leio mais algumas coisas, mando e respondo e-mails e começo a escrever. Depois de umas 3 horas, levanto, abro a geladeira e pego alguma coisa para comer. Eu não acredito em almoçar e, movida pela crença, não almoço, mas passo o dia beliscando. Volto a trabalhar, só que antes das 4 lembro que preciso buscar suas calças e camisas sociais no tintureiro e também tenho que lavar roupa. Desço, coloco as roupas em uma das máquinas da lavanderia comunitária que fica no térreo e vou ao tintureiro buscar as camisas e as calças sociais. Volto, subo, guardo as camisas e as calças sociais, dou comida para as cachorras e já é hora de ir até o térreo colocar as roupas para secar. Desço com as cachorras, passeio, jogo as roupas na secadora e subo. Leio algumas notícias sobre o Corinthians e volto a trabalhar até ter que ir buscar as roupas secas. Subo, jogo tudo sobre a cama, desamasso e dobro todas elas, passo o que tem que ser passado – nunca as minhas porque não acredito em passar roupa, mas você acredita e, como sei que você não gosta de nada amassado, passo algumas das suas.

Vejo que está escurecendo e me animo porque sei que você não vai demorar muito. Trabalho mais um pouco, levanto e começo a preparar o jantar. Você liga, puxa um pouco de conversa, diz que vai dar um pulo na academia. Eu olho a hora, respondo mais alguns e-mails, fecho o escritório e vou para o sofá ler. Você chega, eu levanto para receber você na porta, as cachorras fazem um escândalo como se não vissem você há meses, a gente dança um pouco no meio da sala, você pergunta o que temos para o jantar, eu digo que é surpresa e te sirvo uma taça de vinho – ou de saquê; recentemente você deu para tomar saquê. A gente janta, fala das famílias, do Brasil, do dia de trabalho e depois vai para a sala, onde eu coloco um capítulo de Girls – ou de House of Cards, ou de Mad Men, ou de Orange is The New Black, ou de Grey’s Anatomy. Você dorme antes de o capítulo acabar, eu levanto, desarrumo a cama para que você, cambaleando e semiacordada, tenha apenas que escovar os dentes e se jogar nela. Você faz isso, eu também deito, pego um livro para ler, mas sinto seu corpo querendo o meu, então fecho o livro e apago a luz para que você encoste no meu ombro. Você se encaixa, eu escuto sua respiração ficar mais funda e espero seus pés começarem a tremelicar em leves espasmos. Nessa hora sei que você pegou no sono. Eu beijo sua testa, digo que te amo e, com você em meu ombro, fecho os olhos e durmo.

* A carioca Milly Lacombe, 46 anos, já exercitou a paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu cubículo em Nova York, onde foi passar uma temporada com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com

fechar