Mulherão: Mallu Magalhães

por Marcus Preto
Tpm #150

Ela conheceu cedo o que é sucesso e o que é bullying, brigou com a família, casou com um popstar, ficou doente, se curou e hoje colhe louros com a Banda do Mar

Mallu acorda cedo. Cedo mesmo, logo depois que o primeiro sol começa a entrar em zigue-zague pelas frestas da janela do quarto. Assim que abre os olhos, ela calcula: Marcelo acabou de pegar no sono. Como o marido raramente vai para a cama antes das 5 da manhã, o ontem dele termina quase ao mesmo tempo em que o hoje dela começa. Enquanto ele dorme, Mallu vai fazer as coisas de todos os dias: mercado, balé, costura, alguma arrumação na casa, corrida, desenho, fogão, comida aos gatos, pintura, e-mails, música. A rotina já era bem assim quando os dois começaram a viver juntos, ainda em São Paulo, pouco depois do começo do namoro em 2008. Continuou a mesma quando foram viver no Rio, em 2011. E segue igual agora em Lisboa, para onde se mudaram há um ano e meio. 

A mudança de país era um risco para Mallu, ao menos em tese. O marido Marcelo Camelo já tinha uma história sólida, sobretudo pelo passado à frente de Los Hermanos, a última banda que realmente importou para o mainstream da música pop brasileira. Poderia sumir por um tempo, se quisesse, e ainda assim sua volta seria esperada com expectativa. Mallu Magalhães, ainda não. A carreira dela vinha sendo construída cuidadosamente no Brasil, desde que surgiu como fenômeno na internet, em 2008. Já contava com um DVD e três álbuns de relativo sucesso no currículo. Mas também trazia todas as incertezas que, no atual mercado de música do país, carregam os artistas com essas características. Ainda que seu fã-clube estivesse sempre ascendente, sair do radar poderia botar muita coisa a perder. 

Mas nada disso aconteceu. O tempo em Portugal serviu menos para Mallu se esconder e muito mais para que ela se fizesse ver e ouvir. Isso se deu a partir de uma ideia infalível: juntar as personalidades dos dois, Mallu e Marcelo, em um projeto “de casal”, de pegada altamente pop, leve e ensolarada, em que ambos se revezassem nos vocais e na autoria das canções. Era o que todos queriam, mesmo os que nunca tinham pensado nisso. 

Além do talento de ambos e do charme que esse tipo de projeto traz na essência (como vimos em Baby & Pepeu, em Rita & Roberto, e até, de certo modo, em Lennon & Yoko), o caso de Mallu e Marcelo envolvia ainda toda a curiosidade que a relação dos dois despertou desde o começo. Lembrando, é a história da menina de 16 anos que se apaixona por um homem 14 anos mais velho, é correspondida e tem de lutar contra o preconceito de meio mundo até chegar ao “happy end”. Estamos nesse ponto e a Banda do Mar é justamente o final feliz da história – aquele em que o espectador conclui que o amor é que estava com a razão. Na banda, entre marido e mulher, há o baterista português Fred Ferreira, uma estrela naquele país, amigo número um do casal.

Futuro

No palco da Banda do Mar, Mallu não é mais a menina introspectiva e um tanto tímida que se apresentava em carreira solo. Essa, que esteve na capa da Tpm em agosto de 2011 (releia no link goo.gl/6KDSRg), sumiu. Entrou no lugar um mulherão de carisma avassalador, que coloca plateias de 3 mil pessoas no bolso (como tem acontecido nos shows aqui e em Portugal) com um violão, meia dúzia de movimentos e uma dezena de canções. O que aconteceu? Ela responde na entrevista a seguir, concedida em São Paulo no fim de dezembro – em meio à temporada de três meses que a banda passou no Brasil. É fato que, daqui em diante, Mallu é outra coisa. E se hoje não é possível olhar para ela sem cruzar no caminho com olhos de Marcelo (e vice-versa), está mais do que certo que essa nova postura também vai permear os
trabalhos individuais que Mallu fará no futuro. E futuro, nesse caso, é quase tudo: ela ainda tem 22 anos. 

Tpm. Nos shows da Banda do Mar, você surgiu completamente diferente. Não é mais a menina introspectiva do começo. É um mulherão, cantando pra fora. O que aconteceu? 

Mallu Magalhães. Foi meio proposital. Esse movimento de exposição, ou melhor, esse desejo de expansão estava tanto no meu inconsciente quanto no do Marcelo [Camelo]. Estávamos os dois com essa vontade de expandir, que [a música] fosse pra fora, que fosse mais forte, talvez até mais festiva. O Fred [Ferreira] também estava meio nessa. Estávamos chegando naquele país novo [Portugal] e curtindo esse lance com esperança, com o desejo de que fosse tudo lindo e próspero. Era esse o nosso desejo: fazer uma coisa que comunicasse com todo mundo. Que fosse em português, que fosse simples, que fosse boa de ouvir, boa de tocar. E que a gente pudesse dançar também no palco, que pudesse se divertir tocando. A gente queria um pouco essa alegria. Tínhamos passado muito tempo tocando música introspectiva, mais pra dentro. 

Você passou por algum processo interno que a tenha modificado de fato? Acho que, no fundo, sempre fui exibida, sempre fui pra fora e não sabia. Depois de pensar e ler muito a respeito, tenho a impressão de que eu ouvia as pessoas dizendo que eu era uma menina e me punha automaticamente numa posição frágil, sabe? Fraca, pequena. E não é verdade. A menina nada mais é que uma mulher menorzinha. E não tem razão de a gente ficar se sentindo frágil, incapaz. Poxa, já tenho uns bons anos de intimidade com o palco, já entendo mais ou menos como funciona. Eu consigo me comunicar com o público. Tenho um público muito fiel, que gosta do meu som. Eu me senti mesmo à vontade. 

Mas isso é uma novidade pra você? No começo da carreira tinha muita música pra cima. “My Home Is my Man”, aqueles rocks... Só que eram todas em inglês. E é óbvio que ninguém cantava as músicas, não é a língua que a gente fala no Brasil. Com o tempo, fui aprendendo a fazer um show em que eu pudesse realmente colocar todo aquele exibicionismo pra fora, sabe? Eu queria que fosse isso aí, eu sou exibida mesmo, eu gosto de dançar, eu gosto de cantar. Antes, como qualquer pessoa jovem, eu estava procurando quem eu era. As pessoas falavam: “Nossa, você é tão tímida”. E eu fiquei com isso na cabeça: “Puxa, acho que sou meio tímida, não sou de fazer show pra muita gente”. Mas percebi que não era verdade. Vou tentar fazer no show exatamente o que eu sou, dançando que nem uma minhoca louca. 

Aquela menina que tinha pânico de fazer programas de televisão também deixou de existir? Ou a TV ainda é um negócio desconfortável? Sempre vai ser estranho pra gente que não trabalha na TV todos os dias, não é atriz. É uma linguagem diferente. Não acho que tenha virado um grande gênio da televisão hoje em dia, que eu vá chegar lá e quebrar tudo. Isso não é meu talento principal. Mas melhorou muito. Nas primeiras entrevistas, era uma loucura. As pessoas pensavam que eu tinha algum problema. Eu até me aproveitava disso. 

Aproveitava como? Eu usava isso. “Tenho algum problema? Então não me cobra e pronto.” Mas o tempo passa, as pessoas veem que o fato de você ser diferente não significa que você tenha algum problema. E o fato de ter algum problema não significa que isso é ruim. Qual o problema de ter algum problema? Então, fui me firmando ao longo do tempo. E as pessoas foram compreendendo. Agora, realmente teve esse momento de amadurecimento, de autoconhecimento. Vai passando o tempo e a gente fica mais íntima da gente mesma. E isso favorece tudo.

Você está com 22 anos. Quando olha pra trás e se lembra da menina que você foi, sofrendo bullying nas redes sociais, o que você pensa? Pra que aquilo serviu? Serviu muito. Como eu perdi tudo o que uma pessoa de 16 anos podia querer – a aceitação, a adoração, o elogio... Como perdi tudo isso numa escala nacional, em público e na televisão, consecutivas vezes, eu cresci sem isso. Eu não me apeguei à minha imagem, nem a elogios, a aceitação. Eu tive que sobreviver. E, na época, também briguei com meus pais, já não tinha uma relação familiar. E já não ia à aula, não tinha colega de escola. Estava tudo ao contrário. 

Por que essas brigas? Muito por causa disso. É um desespero, uma pessoa de 15 anos, depois desse pós-primeiro sucesso. Todo mundo que tem uma primeira exposição sofre isso que eu sofri. No começo, fica todo mundo atento, muita gente apreensiva querendo saber o que você vai dizer, o que vai fazer. Você vira o centro das atenções. E depois você não é mais. Então, todo aquele assunto que é fruto da novidade não existe mais. E sobra você, os seus assuntos. E o público tem uma necessidade de reação. O ser humano é reativo, a gente reage às coisas. A felicidade é um lance inventado. Tudo isso é inventado. Então, a gente vê uma coisa e quer reagir. É normal que depois de um sucesso tenha uma reação. 

E justamente nessa hora você briga com seus pais, com os amigos da escola... É. Um monte de amigo que não era meu amigo, sabe? Mas eu também não era. Não é que eu era uma santa, impecável e todo mundo ficou louco e brigou comigo. Eu também devo ter sido uma fera. Eu também estava reagindo. Eu não era nenhuma ninja das relações sociais, ninguém é com 15 anos. Talvez ninguém seja com 80. É difícil. Eu sofri com isso, com essa coisa das relações, de não conseguir administrar, de não saber pedir ajuda. E, diante do medo, reagir com distanciamento. Por via das dúvidas, se distanciar de tudo. “Nossa, com tudo tão estranho, não quero nada disso. Vou mudar de cidade, quero falar com outras pessoas, quero fazer outras coisas...” Sabe? Colocar tudo em um bolo de medo mesmo. É normal, qualquer pessoa na minha situação teria reagido assim.

''Meu pai falava: 'Você não pode sair da aula pra gravar um programa, a aula é muito mais importante'. Ele tem razão. Mas aconteceu cedo pra mim e pronto''

Mas a briga dos pais, como aconteceu? Eu tive uma infância linda, ótima, encantadora. Meus pais trabalhavam muito, mas a gente se via à noite, no fim de semana, ia pra represa. Sempre fui muito ligada à minha irmã [Ana, um ano mais velha]. Lógico, a gente brigava de se estapear, até uns 10 ou 12 anos, como qualquer criança. Mas a gente sempre foi muito unida. Minha família sempre foi ótima. Só que, com 15 anos, imagino que seja natural você questionar o seu filho, que é uma pós-criança, se aquilo é real, se aquilo é necessário. Como saber que aquilo não vai prejudicar aquela coisinha que você ama tanto?

Eles queriam que você parasse com essa história de música? Eles queriam me proteger. Não necessariamente parar, mas a proteção deles era sinônimo de não fazer. Por exemplo, eu só podia tocar em determinados horários no fim de semana, porque tinha aula. Só que tem as entrevistas, os ensaios, tem que fazer a capa, tem que compor, fazer os arranjos. É muita coisa. E se você não se dedica o tempo todo, fica mais ou menos. Quando eu comecei a tocar, naquele começo em que eles ainda nem diziam nada, eu parei de acompanhar a escola como acompanhava. Até ali, eu era super-CDF, estudava tudo direitinho e tal. Mas a música pegou bem aquele início do ensino médio, que é superdifícil pra qualquer pessoa. Imagina, eu estava viajando muito, sem nenhuma constância na escola. Eu tinha que sair no meio da aula pra gravar um programa. E meu pai falava: “Isso está errado, você não pode sair da aula pra gravar um programa, a aula é muito mais importante”. Ele tem razão. Mas aconteceu mais cedo pra mim e pronto, foi assim que foi. Fui dando meu jeitinho, mas não soube me expressar, brigava.

Brigava como? O jeito que eu dei foi dizendo: “Vocês estão indo contra mim, então eu não vou consultar mais vocês, vou fazer as coisas do jeito que eu quero”. E eles acabaram ficando sem reação – porque, a essa altura, eu já tinha 16 anos, já tinha força e até dinheiro. Já conseguia ficar sozinha. Ficou um desconforto, uma coisa esquisita durante um tempo. Eu comecei a namorar o Marcelo, aos pouquinhos eles foram conhecendo ele. Depois de um tempo, tudo se resolveu e hoje somos de novo muito unidos, como era antes, mas foi bem quando eu mais precisava que eu não tive. Não é culpa deles, acho até que seja minha. Pode até ser triste, mas eu sinto que essa falta deles me fez forte, independente. Eu fico sozinha, fico bem. Não que eu goste, não gosto de ser sozinha. Mas, se eu ficar, eu me garanto.

Logo que você começou a namorar o Marcelo, seu pai disse pra Tpm que apoiava o namoro. Que a diferença de idade era algo menos importante do que o fato de o Marcelo ser um cara legal etc. Foi assim mesmo? Foi exatamente assim. Fofinho ele ter dito isso. Eu não leio nada que sai sobre mim, então não sabia... Que lindo! Bom, mas foi aquele primeiro susto. Eu era pequena, eu era nova e nunca fui aquele estilo mulherão. Eu não era aquela pessoa que com 15 anos tinha peitão e fumava, e tinha tatuagem. Vocês sabem como eu era: punha fitinha na cabeça, brincava das coisas. Até hoje eu sou assim, mas eu cresci. Todo mundo fala: “Nossa, como você virou um mulherão”. Você cresce e começa a ganhar cintura, peito, altura, a voz fica mais grave, o rosto. Eu demorei um pouquinho pra crescer, mas pronto, foi o meu tempo. Eu acho que na hora que ele chegou eu ainda era muito dependente dos meus pais.

Quando o Marcelo chegou? É. Emocionalmente, sempre fui muito dependente dos meus pais. Tenho a impressão de que todo mundo é. No fundo, a gente faz muita coisa só pra se sentir aceita pelos pais. O que a gente mais quer é ouvir eles dizerem: “Pô, legal pra caramba isso que você está fazendo”. Se seu pai disser isso, você não precisa de mais nada, de dinheiro, de sucesso. Tenho essa impressão, pelo menos comigo é assim. Meus pais tiveram aquele primeiro choque: uma filha de 16 anos que eles esperavam que namorasse um garoto da escola, que é o normal. Marcelo era o mais velho que eu tinha namorado. E era de outra cena musical, era de outra cidade. Meus pais tiveram um susto, só que logo perceberam que o Marcelo foi um presente pra minha vida. E pra vida deles. Eles falam isso. Desde que eles começaram a se dar bem com Marcelo – o que demorou um ano, no máximo – eles pararam de se preocupar comigo.

E como foi esse um ano? O Marcelo deve ter feito todo um processo de sedução com seus pais. Você chegou a sacar isso? Poxa, ele se mudou pra São Paulo! Um carioca se mudar pra São Paulo é difícil. Ele se mudou especificamente pra isso? Diz ele que foi pra chegar perto de mim. Estou acreditando, acho uma história bonitinha [risos]. Não, ele estava também numa onda de São Paulo. Não foi só por minha causa, tinha o [estúdio] El Rocha, que ele gostava muito. Tinha [a banda] Hurtmold e toda uma cena musical que ele gostava, ele tava querendo mudar de ares. Às tantas, ele alugou um apartamento em São Paulo e tinha outro no Rio. E ficava pingando. Depois, quando nosso relacionamento foi ficando mais sério, ele trouxe os gatos pra cá, o que é muito simbólico. Onde os bichos estão é onde você mora. A gente passou um tempo – um ano e meio, dois anos – pingando entre São Paulo e Rio. Depois, a gente ficou só lá. Fechou o apartamento aqui [em São Paulo]. E seus pais já acharam tudo certo. Já! Tudo certo. Meu avô, que faleceu, quando conheceu o Marcelo ficou apaixonado por ele. Eles eram carne e unha. Mandavam e-mail um pra o outro. Eles curtiam câmera, música. Eram dois fofos. Tinham muito a ver. Essa paixão pelo prazer da vida. Ficavam falando de um prato de comida do mesmo jeito que falavam de um filme. Da película. É tudo lindo.

"Meus pais tiveram um susto, só que logo perceberam que o Marcelo [Camelo] foi um presente pra minha vida. E pra vida deles"

Ele se mudou especificamente pra isso? Diz ele que foi pra chegar perto de mim. Estou acreditando, acho uma história bonitinha [risos]. Não, ele estava também numa onda de São Paulo. Não foi só por minha causa, tinha o [estúdio] El Rocha, que ele gostava muito. Tinha [a banda] Hurtmold e toda uma cena musical que ele gostava, ele tava querendo mudar de ares. Às tantas, ele alugou um apartamento em São Paulo e tinha outro no Rio. E ficava pingando. Depois, quando nosso relacionamento foi ficando mais sério, ele trouxe os gatos pra cá, o que é muito simbólico. Onde os bichos estão é onde você mora. A
gente passou um tempo – um ano e meio, dois anos – pingando entre São Paulo e Rio. Depois, a gente ficou só lá. Fechou o apartamento aqui [em São Paulo]

E seus pais já acharam tudo certo. Já! Tudo certo. Meu avô, que faleceu, quando conheceu o Marcelo ficou apaixonado por ele. Eles eram carne e unha. Mandavam e-mail um pra o outro. Eles curtiam câmera, música. Eram dois fofos. Tinham muito a ver. Essa paixão pelo prazer da vida. Ficavam falando de um prato de comida do mesmo jeito que falavam de um
filme. Da película. É tudo lindo.

Quem conquistou quem na história de vocês? Você chegou nele ou ele em você? Foi meio ao mesmo tempo. Diz ele que estava em casa e me viu tocando violão na internet. Ele passa muito tempo no computador todo dia – durante a noite, na verdade, porque ele não acorda muito pro dia. Fica pesquisando muita coisa. E me conheceu assim, logo no início. Mandou umas mensagens pra mim no MySpace, falando que queria fazer uma música comigo. Só que eu não vi essas mensagens. Era muita coisa que mandavam ali, eu não tinha tempo de ver tudo. Nunca respondi.

E ele? Ele passou um tempão assim. Daí, pensou: “Já que ela não vai fazer uma música comigo, faço eu uma que ela possa gostar de cantar, do jeito dela”. E fez “Janta”. Entrou em contato com meu empresário, que me mandou um e-mail falando da música. Na hora, fiquei deslumbrada, fiquei toda alegre. Topei gravar. Só que, até então, eu não tinha visto nem foto dele. Os discos que eu tinha dos Hermanos mostravam no máximo o rosto deles refletido na água. Eu nem sabia como era a cara do Marcelo. Mas fui fazer um show no Rio, o meu primeiro, e ele foi lá me ver. Quando ele apareceu, pra mim acabou.

Acabou como? O que vocês falaram? A gente nem se falou, não deu tempo. Eu estava saindo do palco e ele estava de casaco preto, lembro direitinho, óculos escuros e um gorro preto, disfarçado. Eu, quando olhei ele, juro, alguma coisa brilhou. Ai, caramba. Apaixonei, eu nem tinha visto ele direito.

Você sacou que era ele? Saquei porque ele pegou minha mão e deu um beijinho. Meu empresário falou: “O Marcelo veio ver o seu show. Ele está bem ali”. E na hora que eu olhei pra ele, uma entidade linda, ele só esticou assim, pegou minha mão, deu um beijinho. Nessa hora eu já gostava muito dele. Aí foi isso. Eu tinha um namorado, ele tinha a namorada dele. Aí foi passando o tempo, a gente foi se mandando e-mail, os dois foram terminando e aí rolou.

Bom, por tudo o que você contou, ele que foi atrás de você. É, acho que foi ele que deu o primeiro passo, sim.

Por que vocês mudaram pra Portugal? Uma das razões foram os amigos. A gente tinha uma rede de amizades lá, principalmente o Fredinho, que era um grande amigo do Marcelo e virou meu também.Estávamos morando na Barra [da Tijuca, no Rio]e começamos a nos incomodar com a violência. E Lisboa é linda, a cultura é interessante, a comida. Toda vez que a gente ia, ficava encantado com a vida lá. Andávamos a pé, não tinha violência, isso era um atrativo. Então, decidimos passar um tempinho naquela cidade pra dar uma espairecida. E acabamos gostando. Alugamos um cantinho lá e ficamos pingando, que nem a gente tinha feito antes com Rio e São Paulo. E estamos assim até hoje. Os gatos estão lá, mas a gente passa muito tempo no Brasil. Viemos fazer turnê, ficamos uns três meses, voltamos pra Lisboa e, às vezes, não passam nem 15 dias e já pinta um lance aqui de novo. Em um futuro próximo, a gente arranja um cantinho em São Paulo ou no Rio. Tudo o que a gente construiu está no Brasil.

"Gosto de ficar em casa pintando, ajeitando a casa, fazendo móveis, forrando o sofá, cozinhando. Adoro cozinhar"

No Brasil, vocês eram bem reclusos. Lá é assim também? A gente sempre foi muito caseiro, os dois. Eu sou mais do dia, o Marcelo é mais da noite, mas são os dois de ficar em casa. Eu gosto de ficar em casa pintando, ajeitando a casa, fazendo móveis, forrando o sofá, essas coisas assim. Cozinhando, adoro cozinhar. Aí, vou no meu balé, vou comprar tecido, volto pra casa. É um dia a dia muito produtivo. Ele às vezes sai pra jantar às 2, 3 da manhã e deixa só um bilhetinho. Desce a ladeira, vai no restaurante que ele gosta, come o bife dele e volta pra casa a pé. Isso é o máximo que a gente faz: comer um bife, um marisco. Eu preciso sair durante o dia, ir pra algum lugar fazer alguma coisa. O Marcelo não. Ele constrói as coisas à noite, é o momento produtivo dele. Mas pra balada ou eventos a gente nunca vai. Continuamos com o hábito de convidar as pessoas, fazer jantar. No Brasil, a gente fazia muito churrasco. Lá em Lisboa é jantar, não dá pra fazer churrasco porque é apartamento.

Pouco antes da mudança pra Portugal, teve um episódio de paparazzo fotografando vocês na praia. Esse assédio também contou? Também. A gente ficou um pouco chateada com essa invasão. Existe um erro aí. A minha profissão não é aparecer de biquíni. Pode acontecer, porque eu vou à praia e, como qualquer pessoa comum, uso um biquíni. Aí, vem um fotógrafo e tira a fotografia.

Isso não faz parte? Faz parte, a gente sabe. Não é uma coisa que a gente seja contra e vai fazer uma passeata. É o trabalho deles. As pessoas querem saber umas das outras, o que é lindo, os seres humanos se comunicando uns com os outros. Mas pra gente começou a ficar invasivo, a gente morava num lugar que tinha muito esse lance de paparazzi. E não era isso que a gente queria mostrar. A gente quer mostrar esse som, esse CD. Estava existindo um leve incômodo. Mas muito leve, não influenciou na nossa razão de mudar. Essa coisa incomoda, lógico, mas nunca foi um pesadelo.

Em termos profissionais, a mudança pra Portugal poderia ser um risco pra você. Pro Marcelo, menos, já que a carreira dele é mais antiga e Los Hermanos é quase uma religião. Não pintou um medo? Muita gente me falou isso. “Você vai pra Portugal? Por que você vai fazer isso? Tudo o que você fez está aqui. Pra que você vai pra lá que não tem nada?” Mas não é assim. O nosso trabalho é muito maior que isso. Mudar de lugar é a coisa mais saudável que o artista pode fazer – não a mais perigosa. Quando você muda, surgem novas inspirações, novos medos, e você abandona medos antigos, porque agora você está preocupado com seus medos novos. É uma renovação de espírito e da sua fonte de trabalho. Lógico que eu tinha medo de ir pra lá e não ser legal. Estava gastando a maior grana na mudança, é um investimento. Mas, fora isso, eu sempre soube que tudo é possível. Isso é um fundamento tão básico na minha vida que alguns medos nem passam na minha cabeça.

Explica isso. Pra mim é lógico que tudo é possível. É lógico que você pode se mudar agora pro Japão e virar, sei lá, designer de sofá. Você pode fazer tudo e essa é a minha noção de sucesso: é querer fazer uma coisa e fazer. Esse é o apogeu, esse é o máximo onde se pode chegar. Não é ser reconhecido e ganhar grana, apesar de grana e reconhecimento serem coisas fantásticas. Minha sensação de plenitude é a conquista, é o atirar, é o querer ir ali e ir. Acho até que, com o tempo, essas coisas viram um vício. Tenho esse gostinho pelo desafio. Gosto de estar quase em perigo pra depois falar: “Eu consegui”.

Você faz balé. E corre também. Queria saber mais sobre essa Mallu atleta. Quando era criança, devia ter uns 4 anos, minha mãe tentou me colocar no balé. Tinha uma foto da minha primeira aula – primeira e última. Era muito briguenta, muito brava, e a aula de balé era pacífica demais pra minha alma. Fui brincar de cama elástica, fazia lutinha com meu pai. Mais tarde, lá pelos 18, fiquei doente. Tinha um negócio no intestino. E o intestino é nosso segundo cérebro – que mexe muito com nosso primeiro cérebro. Se sua cabeça não está tão legal, começa a desandar tudo e seu corpo começa a sentir, você começa a enfraquecer.

Quando foi isso exatamente? Eu estava naquele momento pré-Pitanga [álbum lançado em 2011]. Ia ao médico e ele me dizia: “Você tem uma depressão, tem um déficit de atenção, tem isso, tem aquilo”. Pensei: “Quer saber? Vou fazer balé”. No balé, você precisa ser muito atento, precisa ter coordenação motora. E as pessoas que fazem balé são fortes, os grandes bailarinos têm aquele coxão, aquele porte físico. Eu não estava com força e queria ter. Comecei a fazer balé há quatro anos e tudo melhorou. A minha postura, a autoconfiança. Eu me sentia capaz de tudo. Fazia aula com umas criancinhas de 12 anos e eu tinha 18. Minhas colegas de barra eram um barato.

"Essa é a minha noção de sucesso: é querer fazer uma coisa e fazer. Esse é o apogeu. Não é ser reconhecido e ganhar grana"

Isso foi antes da viagem. Foi. Quando a gente mudou pra Lisboa, continuei as aulas lá, arrumei novas amigas. É muito bom pra mim. Não vou além do que posso, não fico forçando meu pé a virar. Eu realmente não gosto de sofrer. E a corrida? Já fazia havia muito tempo, desde criança. Na escola, eu fazia atletismo, era muito boa. Com a experiência, fui aumentando a quilometragem. Gosto de fazer meia maratona, mas, às vezes, faço a maratona inteira. Costumo fazer pelo menos três vezes por semana as corridas de longa distância, de 10 a 15 quilômetros. E, no intervalo, faço aquele lance do sapatinho, em que você põe os dedinhos. O seu pé fica parecendo de sapo. É uma delícia correr com aquilo. Você cansa horrores, o pé trabalha, a coxa trabalha. Muita energia.

Foi por causa do problema no intestino que você passou um tempo tão magra? Foi. As pessoas diziam que eu estava com anorexia. Não é bem isso. Eu estava com 18 anos, viajando, sem nenhum preparo emocional, mais a briga com meus pais,com aquele lance de não ter feito escola. As pessoas indo fazer vestibular e eu nada, nenhum diploma.

Você interrompeu a escola em que período? Fui empurrando com a barriga sempre e terminei meio pelo correio, uma tragédia. Terminei o colegial. Só não fui, mas está feito.

Voltando: você estava com 18 anos... Quem corre, perde peso fácil, então precisa se alimentar bem. E eu sempre fui uma draga, sempre gostei de comer. Mas, às tantas, eu comia e passava mal, ficava com dor de barriga. E fui perdendo peso muito rápido. Depois descobri que não estava digerindo as coisas que eu comia. Passei um tempo sem saber o que estava acontecendo e foi desesperador. Tentei várias alternativas: comer só proteínas, só carboidratos, só frutas. Depois, fui pra São Paulo e uma nutricionista me ajudou. Aos pouquinhos eu consegui me recuperar. O que aconteceu com meu intestino é que ele perdeu as curvinhas, então ele não conseguia segurar os alimentos. Eu comia normal, ia ao banheiro normalmente, mas meu intestino não absorvia. É um problema primo da doença de Crohn. Isso mexeu muito com a minha cabeça. Eu ficava com aquele corpo fraco, era tudo fino e tudo magro. Ao mesmo tempo, ia pras revistas e as pessoas me diziam: “Nossa, você está linda, magérrima!”. Mas eu não achava isso bom. Com o passar dos meses, foi piorando tanto que fui procurar ajuda médica. E resolvi. É uma doença totalmente contornável.

Com dieta? Com dieta. Você não come as coisas que não digere. E evita ficar sem comer. Come volume, ao longo do dia, comida variada. Mas eu fiquei um palito. Nessa época, tiraram uma fotografia de mim na praia e a repórter colocou: “Mallu expõe seu lindo corpo na praia”. E de lindo não tinha nada. Eu estava doente, passava a semana em São Paulo fazendo tratamentos, experimentando suplementos, 290 ultrassons, 700 psicanalistas, 900 psiquiatras. Até descobrir que era só intolerância a alguns alimentos. Em três meses eu ganhei de volta 15 quilos.

Como foi a experiência com a psicanálise? Eu fiz quando a gente morava no Leblon, pegou bem aquele começo, da briga com meus pais. Lembro que era caro e eu era super mão de vaca. Até hoje acho que ela [a psicanalista] se aproveitou de mim. Pedia pra eu ir lá todo dia. E eu ia, achando que devia estar muito mal. Gastava um dinheiro absurdo. Uma hora, me revoltei. Com aquele dinheiro, dava pra ir pro Japão. Eu achava ela esquisita, meio engraçada. Ela fazia aquelas perguntas que eu já me fazia, ficava meio redundante. E eu não queria ficar ali pra ela perguntar aquelas coisas que me machucavam. Não senti necessidade.

E entraram também psiquiatras. Você se deu bem com antidepressivos?É ótimo, uma maravilha. Quando você está passando por uma situação como a que eu estava passando, seu corpo para de produzir aqueles sais que são importantes pra você liberar as substâncias do cérebro que te dão alegria. Fui ficando sem energia e sem vida. O que é totalmente o oposto do que eu sou. Sou a energia personificada. Quando você toma o remédio, ele te ajuda a melhorar. Pra sair disso, é preciso um impulso. Tem gente que sai sozinha. Muitas pessoas encontram esse impulso na religião. Eu tinha o Marcelo, minha família, a música e a mim mesma – sempre gostei de mim. Tinha muitos motivos pra sarar, mas realmente aquilo estava custando muito. E eu não queria sofrer. Estava cansada daquele estilo de vida fraco, impotente. Eu queria minha vida de volta. Minha vida com fome. Fome de mundo, de comida, de desejo, de prazer. O remédio ajudou muito.

Como ficou o Marcelo nesse período? Tinha dia que ele nem dormia. Eu nem sempre conseguia levantar e não queria esse lance de enfermeiro, seria horrível. Tinha que fazer uns mingaus estranhos e ele ia pro fogão. Fofinho. Me ajudava a levantar as coisas, arrumar a casa, tomar banho. Por causa da desnutrição, a gente não podia nem pegar avião. Viajava só de carro porque tinha risco de coágulo. Eu desmaiava com muita frequência. Um lance que era muito chato era não poder ir no supermercado, que eu sempre adorei. Eu quis tanto melhorar que melhorei rápido. Meu médico dizia que eu era um foguete.

"Tiraram uma fotografia de mim na praia e a repórter colocou: 'Mallu expõe seu lindo corpo na praia'. E de lindo não tinha nada. Eu estava doente"

Nessa altura, li gente dizendo que você devia estar sofrendo por causa da música. Que era muito nova pra aguentar tudo aquilo. Você chegou a ouvir essas coisas? Muito [risos]. Umas pessoas diziam que meu pai era um empresário bem-sucedido no ramo da música. Imagina! Meu pai é engenheiro mecânico, trabalhou em plataforma de petróleo. Minha mãe é paisagista. Ninguém da minha família é da música. E tinha gente que dizia que eu era uma invenção da indústria, injeção de dinheiro. Que dinheiro? As pessoas são loucas! Nunca saiu nada da mão do meu pai. Eles sempre estiveram lá se eu precisasse, mas sempre incentivaram a gente a conquistar o que a gente quisesse. Isso sim é uma grande criação. Deve ser difícil criar um filho independente. Também já falaram que eu estava grávida, que eu estava louca. Já teve de tudo.

"Quando eu fazia as músicas introspectivas, minha mãe dizia: 'Filha, as pessoas querem dançar. Não querem ficar só olhando'"

Os haters estão mais mansos? Você saiu do foco? Eu tenho a impressão de que são ondas. Em certas épocas, as pessoas estão gostando mais de certo tipo de música, consequentemente daquele tipo de pessoa. E a gente, como artista, é a personificação desses gostos. Por isso é natural que depositem na Mallu, no Marcelo, no Jorge Ben e no Caetano Veloso os ideais e as coisas que aquele trabalho representa. Que nem moda: tem épocas em que as pessoas vestem uma coisa, épocas em que fica ridículo. A pochete já foi incrível, a pochete já foi odiada, a pochete já foi um clássico. Coitada, ela é só uma pochete. O artista é meio uma pochete: ele às vezes é incrível, às vezes é mais ou menos... Mas tenho sentido que as pessoas estão me aceitando mais. E me conhecendo mais. Descobriram que sou uma artista legítima. É um trabalho duro, do dia a dia, de cada música, de cada desenho, de cada entrevista.

E o que os seus pais estão achando da fase Banda do Mar? Estão adorando. Quando eu fazia as músicas introspectivas, pensadas, minha mãe chegava no final do show e dizia: “Filha, as músicas do Rod Stewart iam ficar lindas na sua voz. Ou do ABBA. Filha, as pessoas querem dançar. Não querem ficar só olhando”.

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