(Des)controle de qualidade

por Lia Bock
Tpm #147

Uma discussão sobre a representação feminina na TV brasileira

Três executivas que trabalham entre televisão, cinema e internet discutem a representação feminina na TV brasileira. Será que as moças da telinha nos representam?

Contradição, a gente vê por aqui.

“A televisão cada vez mais retrata a diversidade da mulher”.

“Mas a mulher real, que não está na TV, estará mesmo é na internet”.

“O mercado audiovisual está feminino: as mulheres estão em todos os cargos.”

“Mas quem dirige a televisão no Brasil, de verdade, ainda é homem. Em um casting, uma gostosa tem dez vezes mais chances”.

“Você vê a novela das 8 e todo tipo de mulher está bem representado”.

“Você vê o Big Brother e é um monte de bunda deitada”.

As frases destacadas acima são de um bate-papo que a Tpm promoveu sobre televisão – mais precisamente, sobre como a TV trata (e retrata) a mulher. Na mesa de discussão, armada no Rio de Janeiro, estavam Juliana Algañaraz, argentina que já dirigiu a Endemol (produtora holandesa especializada em reality shows, entre eles o Big Brother) no Brasil e agora é CEO do sucesso Porta do Fundos; Daniela Mignani, diretora geral do canal GNT – como se sabe, um canal inteiramente voltado ao público feminino –; e Carolina Jabor, cineasta e sócia da produtora Conspiração Filmes. 

Ainda temos traços machistas em nossa programação? Muitos, explicam elas nas páginas a seguir. Mas há avanços, em quantidade e qualidade, na maneira como as mulheres são mostradas? Não há dúvida. Como diz uma outra frase pinçada do debate, essa de Carolina: “A gente já mudou muito, mas ainda tem muito o que mudar.”

Tpm Vocês se sentem representadas e respeitadas pela televisão brasileira? Será que a programação abraça todos os tipos de mulher que vemos hoje?

Daniela Talvez eu tenha uma visão particular disso. Porque realmente acho que a televisão cada vez mais retrata a diversidade da mulher. Sinceramente. Mas, claro, não dá pra negar: existe uma questão anterior, a beleza feminina sempre foi cartão de visita no Brasil. Não faz muito tempo que o cartaz da Embratur era uma mulher de biquíni. O Brasil cultua a sensualidade, o corpo. Mas, mesmo assim, vejo uma diversidade na televisão. Vejo a mulher executiva, vejo a mulher mal-amada, a mulher dona de casa, a mulher doce, a mulher agressiva. Até mesmo os personagens da novela, quantas mulheres fortes... Fora as séries, Revange, Good wife, Scandal, Orange is the new black, Girls, House of cards...

Os exemplos mostram uma variedade real de mulheres, mas eles são gringos, na maioria. Na televisão brasileira, ainda é uma visão masculina que prevalece?

Juliana Eu trabalhei nos EUA e lá a mulher tem um espaço muito forte. Se alguém ousa fazer diferença entre homens e mulheres, a coisa complica. As pessoas têm total consciência de seus direitos. Mas a realidade na TV brasileira é outra. Eu dirigi a Endemol, que trabalha com televisão aberta. Gente! Quem dirige televisão no Brasil é homem e, se não é homem, é aquele tipo de mulher que acha que tem que ser homem pra dirigir, sabe? Tem pouquíssimas mulheres com sua feminilidade resolvida tomando decisões. Isso faz muita diferença. Porque você senta com um diretor e ele fala: “Ó aquela gostosa, nossa”. Ainda existe isso. Em um casting a gostosa tem dez vezes mais chances, principalmente na frente daquele velho tarado que trabalha há 40 anos na televisão. Acho até que as novas gerações são diferentes. Porque esse velho é o mesmo diretor que antes dava piti, assediava os empregados, falava: “Você é um bosta, um merda”. Esse povo está saindo da TV e já tem uma nova geração chegando, com novas regras... mas a mudança é devagar.

Carolina Isso é verdade, eles são tarados. Mas já tem ficado mais constrangedor para um executivo ter esse tipo de comportamento.

Ainda vivemos em uma sociedade machista e que empurra a mulher para padrões de beleza, para o consumo. É o corpo que importa. Isso, na televisão, ainda nos deixa muitas vezes na posição de enfeite. Nossa televisão não parece às vezes uma grande máquina de produção de musas?

Carolina Máquina de produção de bundas, né?! Quando eu mudo de canal e, sem querer, dou de cara com essa televisão banalizada e barata fico até nervosa, acho ruim demais. É uma over sensualização. E, do meu ponto de vista, são mulheres horrorosas, com aquelas bundas absurdas, aqueles peitos absurdos. Fico doida com essa podridão. Não consigo nem avaliar direito o impacto disso, porque tendo a isolar da minha realidade.

Daniela Tem um termo que eu amei para se referir a esses programas no estilo Chacrinha ou Pânico: “Surra de bunda”.

O documentário Miss Representation, de Jennifer Siebel Newsom (de 2011), fala sobre a representação da
mulher na televisão americana. Fica claro que esse não é um problema apenas do Brasil e muito menos apenas dos programas de entretenimento. Em dado momento, cenas de telejornais mostram mulheres como Hillary Clinton e Condoleezza Rice. Comentários sobre a roupa que elas usam e se já fizeram cirurgia
plástica pipocam na tela...

Carolina Ah, não... Ficar checando silicone e plástica é um absurdo.

Juliana Não veria problema se criassem um programa específico só pra isso. Mas misturar tudo não dá.
Na verdade, é um problema social mais sério. Você cresce com isso. Minha sensação dessa discussão é que nada vai mudar se não começarmos um trabalho pela valorização do feminino nas classes C e D. No Brasil as mulheres não sabem seus direitos. Às vezes acham até que é natural apanhar.

Carolina Mas hoje, por exemplo, na classe C eu vejo que as mulheres têm a mesma força que as executivas poderosas. Escuto as histórias da Eliane, minha massagista, e falo: “Como é que você consegue acordar todos os dias?”. Considero heroísmo.

Mas vocês, que estão dentro desse sistema, quando aparece alguma ideia ou um jeito de tratar uma mulher que seja um pouco mais contemporâneo, tem espaço? 

Carolina Sim, inclusive, está na moda. Acho que hoje está em alta fazer coisas para a valorização da mulher. Não estou dizendo que não há um machismo no mercado, há, sim. Mas vejo hoje, pelo menos onde estou trabalhando, uma vontade nesse sentido.

Daniela 100%. Eu acho até que a atualização da TV hoje está mais em cima do homem, da configuração familiar e dos gays do que da mulher. Pra mim esse tema já foi. Pode ser porque trabalho numa TV por assinatura, um canal qualificado, e nosso espectro talvez seja diferente.

“Tem pouquíssimas mulheres com sua feminilidade resolvida tomando decisões na TV”
Juliana Algañarraz


Mas mesmo assim a televisão ainda é, no geral, feita sob uma visão masculina. Parece um contrassenso?

Carolina Mas a Rede Globo, acho, tem um certo cuidado com isso... Não que eu esteja defendendo a Rede
Globo, nem quero...

Juliana Desculpa, aqui vou ter que discordar! O que a Globo tem de diferente do SBT? Você vê o Big Brother e é um bando de bunda deitada e são todas iguais, fora uma única gordinha que está lá para cumprir a cota.

Daniela Olha, eu acompanho a novela das 8, Império. Se a gente fizer uma radiografia da representatividade da mulher ali, vai ver que tem um pouco de tudo. Tem a Isis, que é amante do cara. Tem a Lilia Cabral em um papel preponderante na família, uma mulher forte. Tem a Leandra Leal, que se assemelha ao que a Carol falou da classe C: uma mulher lutadora, positiva, segura todas as ondas. Tem a Drica Moraes, que é a má, a perversa... Tenho essa sensação de que há essa representatividade.

Carolina A gente já mudou muito, mas ainda tem muito o que mudar. Porque se você passeia pelos canais o que vê é mulher com a bunda pra cima e o peito aparecendo. A bunda em primeiro plano, claro!

Juliana O pior: ninguém reclama. Será preciso um supertrabalho para que essa mudança chegue no conteúdo de fato. Aquele vídeo do Porta dos Fundos do xaveco na rua [em que os papéis se invertem e a moça dispara a falar baixarias para o homem] está entre os dez vídeos mais vistos do canal. E os homens riem deles mesmo. Fora que eles estão cada vez mais pensando em cuidar do cabelo, não ter barriga... Isso é fato.

Por sinal, agora está cheio de homem sarado na novela. Na TV de modo geral.

Juliana Está virando homem-objeto. Existe isso, mas as proporções são diferentes. O mercado começa a mandar neles, enquanto as mulheres estão aqui o tempo inteiro tentando remar, tentando ser heroínas. A campanha da Dove, das gordinhas, eu amei.

Uma pesquisa do Data Popular, Representação das mulheres nas Propagandas na TV, mapeou o conflito entre o que os espectadores veem e o que gostariam de ver na publicidade exibida na televisão. Para 65% dos entrevistados o padrão de beleza mostrado nas propagandas é distante da realidade.

Carolina Realmente, a publicidade está mais atrasada. Você vai fazer um comercial e tem que colocar aquela mulher. Há algum tempo dirigi um comercial de cerveja, as reuniões eram barras-pesadíssimas. Eu ficava superconstrangida. Tive que refilmar o comercial três vezes até uma hora que precisei dizer: “O que vocês querem eu não sei fazer”. Desculpa, mas não vou fazer essa mulher desse jeito. Briguei, foi uma confusão.

Daniela Uma vez estávamos fazendo um casting para um programa de decoração. Fizemos testes de vídeo
com arquitetas, designers etc. Uma dessas pessoas, por coincidência, era amiga minha. Eu estava de férias e ela me mandou uma mensagem: “Dani, acabei de fazer teste para um piloto do GNT. Queria te dizer que vou emagrecer, colocar botox e fazer limpeza para tirar as manchas”. Fui ver quem falou com ela: eram
mulheres. Basicamente, a produtora acabou com ela.

Juliana Mas essas mulheres trabalham na televisão e têm que entregar o que a televisão está pedindo. Eu já tive que avaliar mulheres e falar que uma não serve porque está gorda e outra serve porque está boa. Se estou entregando um produto para uma TV masculina preciso usar a lógica masculina. Muitas vezes temos que sentar na frente de homens e falar coisas que, na nossa vida privada, nunca falaríamos. Porque se você levanta muitas bandeiras você é eliminada. Esse é o jeito de sobreviver, até o dia que você tem poder e toma as decisões.

Daniela Mas, honestamente, acho que a gente está em franco desenvolvimento, estamos evoluindo. À medida que a mulher vai se empoderando, tomando decisões, essas coisas vão diminuindo.

O próprio GNT foi passando por mudanças, né?

Daniela Essa é uma boa história pra contar. O GNT tornou-se feminino em 2003. A sigla significa Globo News Television, porque ele nasceu como canal de jornalismo. Em 2003, entendeu-se que havia um nicho de canal feminino e o GNT já tinha esse perfil, com programas como GNT fashion, Saia justa. A programação visual que inaugurou esse posicionamento feminino tinha mulheres nuas, preto e branco, modelos. Em 2008 foi feita uma atualização, com o mesmo conceito. Em 2010 fizemos uma pesquisa e vimos que o visual criava uma resistência porque trazia padrões inatingíveis, sobretudo no Brasil, onde as mulheres são curvilíneas, com coxa, bunda... Em 2010 preparamos uma nova atualização. Trouxemos mulheres reais.

Carolina Democratizou, né?

Daniela Exatamente. A mulher dona de casa que cozinha, a mulher executiva, tinha tudo representado. E isso refletiu também na programação, na ampliação de gêneros, de temas.

Carolina E misturou um pouco mais, né, Dani? Menos segmentado. Não é a tal da bandeira.

“O Porta dos Fundos cutucou a televisão, sim” Carolina Jabor

 

E qual vocês acham que é a tendência dos programas femininos?

Juliana O que vai acontecer quando Ana Maria Braga sair da TV?

Carolina Acho que vai ficar cada vez mais interessante...

Vamos ter o fim da Ana Maria Braga?

Daniela Não acho. Essa glamourização da culinária, por exemplo, isso é um fenômeno no mundo inteiro. A culinária hoje é uma verdadeira celebridade, as pessoas se motivam a viajar para comer. Sinto quase que uma transferência da supervalorização que havia na moda para a culinária. A internet sacrificou muito a moda, porque você não precisa frequentar os lugares nem pra adquirir, nem pra admirar, nem pra conhecer as roupas. Acabou tendo uma desglamourização. Já a culinária é para todos. Agora a gente estreou a Carolina Ferraz, linda, reconhecida, falando: “Adoro cozinhar. Olha o bolo que eu faço, olha o bife que eu frito”. Mas é moderno, transgressor, poder fazer isso.

Os programas de culinária e de arquitetura na TV são mesmo mais democráticos que os de moda.

Daniela É que a moda exclui, é nicho. A cozinha é acolhedora, a decoração é acolhedora. E o que tem de mal nisso?

Carolina A Bela Gil faz a democratização de uma coisa que poderia ser elitista, comida orgânica. E está todo mundo vendo, você vê a Bela influenciando.

Daniela O programa da Bela Gil é o quarto mais visto pela classe C no canal. Foi uma felicidade saber do impacto social.

Juliana E ela tem tudo. Ela é negra, linda, fácil de entender... São esses novos personagens que estão
acontecendo. Não faz o tipo dona de casa. A Bela é um tipo que representa esse movimento.

Daniela Eu fico triste de ver veículos dizendo que tem muito programa de culinária só porque dá audiência
e dinheiro. O programa está lá porque existe um fenômeno social anterior a ele.

Juliana Se o povo não assistisse, não teria marca colocando dinheiro.

O conteúdo audiovisual produzido na internet hoje tem mexido com questões polêmicas. O Porta dos Fundos faz isso, toca em questões da mulher, da Igreja, do racismo. Será que essa visão mais progressista vai influenciar de alguma forma o conteúdo televisivo?

Juliana Nunca a internet vai poder ir 100% para a TV. Isso é uma realidade porque há regras, limitações. O manual de censura da televisão aberta, que rege basicamente tudo, além de ter sido feito por homens, deve ter sido escrito em 1950! O Porta dos Fundos vai agora para a TV, mas é um canal a cabo, que é mais livre, então vira uma questão de adaptar na programação. Mas para a televisão aberta é diferente. E não é o assunto o problema, mas sim, o jeito de tratar.

Daniela O formato da internet acabou influenciando, o jeito mais curto, mais dinâmico.

Carolina Mas o Porta dos Fundos cutucou a televisão, sim. Eles têm um controle de conteúdo, ou melhor, um “descontrole de conteúdo” muito bom. Há uma inteligência por trás, um alto nível de cultura e de forma de escrever. Então tem como gerar conteúdo, mas eles fizeram uma produção muito similar à que é feita na TV.

Juliana Nos EUA hoje os youtubers estão mais famosos do que atores que protagonizam séries. E daí, voltando um pouco, acho que as mulheres vão ocupar bem esse espaço. Vão aparecer na internet, produzir para a internet. Essa mulher real, que não está na TV, estará na internet. Aí, sim, acho que a TV a cabo e as plataformas mais premium vão testar e a televisão aberta vai correr atrás. Na internet até o mundo da publicidade tem coragem de sair do estereótipo.

E como é trabalhar inserida nesse contexto masculino, com regras masculinas?

Juliana O Porta dos Fundos é uma empresa de homens. São cinco sócios, mas todas as cabeças embaixo são mulheres. Eu brinco com eles: “Só uma mulher poderia entrar no lugar que eu entrei”. Porque tem demasiado ego masculino em cima da mesa. E, olha, eles são machistas. Você se descuida na reunião e eles estão olhando a bunda que passa. Basicamente, tenho cinco novos filhos.

Carolina Eu trabalho há 20 anos na Conspiração, que é uma empresa formada por homens. E eu vi mulheres muito fortes passarem lá e não aguentaram a barra. Porque é difícil lidar com tanto homem. Eu super me dou com eles, mas tem que ter jogo de cintura o tempo inteiro. Por outro lado, a estrutura de produção hoje no mercado audiovisual é feminina. As mulheres estão em todos os cargos. Às vezes você está numa mesa com 15 mulheres.

Juliana A operação é feminina, mas a lógica ainda é masculina.

Carolina Eu estou trabalhando diretamente com o Claudio Torres em uma minissérie de época, anos 70, quando já tinha toda uma questão da mulher. E o Claudio, essa figura extraordinária, contou uma história sobre uma tribo na Patagônia em que havia um grande segredo que o pajé só poderia passar para os meninos depois que completassem 13 anos. E o segredo não podia ser divulgado de jeito nenhum, principalmente para as mulheres. Qual era o segredo? “São elas que mandam”.

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