Adriana Varejão

por Micheline Alves
Tpm #141

A artista plástica discute a miscigenação no Brasil em sua próxima exposição e declara: ’sou a favor das cotas. O Brasil tem uma dívida com a população negra’

No mês em que abre duas exposições – uma em São Paulo, outra em Nova York – que discutem a miscigenação no Brasil, a artista carioca Adriana Varejão conversa com a Tpm sobre racismo, carreira, “conversinhas de revista feminina” e sobre o que é ser uma das brasileiras mais valorizadas no mercado internacional

A pergunta é simples: “Qual é a sua cor?”. Mas se o entrevistado é nascido no Brasil – país tropical, abençoado por Deus e miscigenado por natureza – as opções de respostas são infinitas. Café com leite, escurinha, pouco clara e queimada de sol, por exemplo, são alguns dos 136 termos que o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgou em 1976, ano em que, pela primeira vez, a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, que atualiza dados demográficos e socioeconômicos da população) não oferecia só o cardápio básico do censo no quesito tom de pele – branco, negro, pardo, vermelho ou amarelo –, mas abria a possibilidade de cada indivíduo definir sua cor.

A artista plástica Adriana Varejão, carioca, 49 anos, há tempos é fascinada por essa lista e pela complexidade das discussões sobre raça no Brasil. O interesse a levou a criar Polvo, obra composta de uma caixa de tintas que reproduz 33 das tonalidades trazidas pelo IBGE, e mais duas séries de retratos. Na primeira, que esteve em Londres em 2013 e estará em Nova York a partir do dia 24, 11 retratos mostram a imagem de Adriana em cores diferentes; na segunda, exposta até 17 de maio no Galpão Fortes Vilaça, em São Paulo, 33 retratos idênticos ganham interferências de cor.

A artista que recebe a Tpm em seu ateliê, uma bela casa no bairro do Horto, no Rio de Janeiro, está cansada: para pôr de pé duas exposições simultâneas, uma delas fora do Brasil, e ainda lançar o livro Pérola imperfeita: A história e as histórias na obra de Adriana Varejão, um catatau de 360 páginas feito em parceria com a historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz (e editado pela Cobogó e a Companhia das Letras), Adriana passou semanas trabalhando até 12 horas por dia. “Desculpe se eu me atrapalhar nas respostas, tô trabalhando direto, sem sábado, sem domingo, então tô meio lesadinha”, diz ela, que mantém voz baixa e bom humor quase todo o tempo.

A cara só fecha diante de perguntas sobre maternidade, casamento, idade – coisas que ela define, sem rodeios, como “conversinha de revista feminina” e para a qual diz não ter a menor paciência. O papo, no entanto, está longe de ser difícil. Com mais de 20 anos de carreira, uma obra respeitável onde se leem as mais variadas referências, Adriana descreve com detalhes seu processo  criativo, fala das viagens que fez, discorre sobre racismo, tema da Tpm e da Trip neste mês, fala sobre ser a pintora do quadro brasileiro de mais alto valor já alcançado num leilão internacional... e em alguns momentos até baixa a guarda para tratar, de leve, de questões mais íntimas – a relação com os pais, um ex-piloto da Aeronáutica e uma nutricionista; o casamento com o cineasta Pedro Buarque de Holanda, pai de sua filha mais nova (Violeta, 9 meses); o ex-casamento com Bernardo Paz, dono do Inhotim, o grandioso instituto em Minas Gerais que reúne as maiores joias da arte contemporânea brasileira e pai de sua filha mais velha (Catarina, 8 anos).

 

“Tô trabalhando direto, sem sábado, sem domingo, então tô meio lesadinha”

 

A Adriana que encerra a conversa depois de 2 horas está sorridente, prepara um café, mostra os cômodos da casa recém-reformada, fala das filhas, recebe a visita do marido. E pede licença para voltar ao batente: além das duas exposições de abril, ela prepara mais duas para o segundo semestre – uma para o Oi Futuro, no Rio de Janeiro, outra para o ICA, em Boston. Não dá mesmo pra ficar de conversinha.

Tpm. Vou começar por seu trabalho atual, que é sobre miscigenação e toca nas questões que estamos discutindo na Tpm e na Trip deste mês. Desde quando você se interessa por esse assunto?
Adriana Varejão. Acho que isso tá dentro da gente, né? Pra quem nasce no Brasil, é impossível isso não estar dentro. Quando eu era pequena, no final da década de 60, minha família se mudou pra Brasília, um lugar formado por imigrantes de toda parte do Brasil. Minha mãe é nutricionista e trabalhava com subnutrição infantil numa cidade-satélite, Sobradinho. Ir ao hospital onde ela trabalhava deve ter sido meu primeiro contato com essa mistura. Mesmo sem ter consciência, a gente convive com uma multiplicidade racial muito grande. Além disso, eu tinha uma babá que era meio índia, meio negra. Ela cuidou de mim durante muito tempo, e esse convívio afetuoso deixa uma marca. O próprio Gilberto Freyre descreve isso. Tem um parágrafo muito bonito no Casa grande & senzala que fala dessa convivência entre o negro e a elite branca – ou teoricamente branca, dada a mistura em que a gente vive. Esse convívio afetuoso, trazido na figura da babá, faz parte da nossa formação.

E quando você descobriu a pesquisa em que aparecem os 136 nomes de cores de pele, que virou a base desse trabalho novo? Desde o início dos anos 90 eu leio muito sobre história e antropologia, acho que sou uma antropóloga frustrada. Quer dizer, frustrada não, porque através do meu trabalho eu me envolvo muito com esse tema. Eu realmente amo antropologia, leio muito, e deparei com essa pesquisa, que é bem conhecida. Não foi uma descoberta minha. Eu acho muito interessante o tema. Você faz a pergunta “qual é a sua cor?” e as pessoas respondem uma lista enorme de nomes. A pesquisa mostra 136 nomes, mas deve ter sido mais que isso. Também não sei se tem alguns mais repetidos. Será que queimado de praia é muito repetido? Queimado de sol... Cai por terra qualquer tentativa de definição racial no Brasil, né?

Qual a sua resposta para essa pergunta, “qual a sua cor?”? Acho que hoje em dia, dos nomes da lista, eu falaria branca melada [risos]. Branca melada não é sensacional? Aliás, muito legal nesse trabalho foi traduzir as cores. O [curador] Adriano Pedrosa era contra traduzir, achava impossível compreender em outra língua essas expressões tão brasileiras. Mas, poxa, esse trabalho vai pra Londres, pros Estados Unidos, e as pessoas não vão entender nada? Achei traduções pra lista num livro de sociologia americano, mas eram horríveis, tentavam descrever a cor – morena bem chegada virava algo como “dark dark brown”, esvaziando completamente o sentido do “bem chegada”. O [músico] Arto Lindsay me ajudou muito nisso, porque é um cara que é poeta, compõe, conhece muito a língua brasileira e a língua inglesa, as gírias, viveu no Nordeste até os 9 anos. “Flirting with freckles”, a tradução para “sapecada”, é dele.

 

“Mesmo sem ter consciência, a gente vive numa multiplicidade racial muito grande”

 

Morena bem chegada virou o quê? “Brown welcomes black”! É muito divertido.

Como veio a ideia de produzir tintas com as cores descritas com esses nomes? Nos anos 90 tive a ideia de colecionar cores de peles de vários lugares do mundo. Na tinta a óleo a cor de pele é um rosa nojento, então eu queria achar a cor de pele africana, a asiática, mas não conseguia. Aonde quer que eu fosse, sempre havia uma padronização do que é a cor de pele. Pensei em fazer um trabalho sobre isto: como é que a cor da tinta não se conectava às questões locais em relação à pele? Mas era uma coisa meio diletante, de sair comprando tubo de tinta em tudo que era lugar pra onde eu viajava. Esqueci o projeto um tempo, até que numa viagem aos Estados Unidos vi uma cor de tinta chamada caucasian flesh tone [tom de pele caucasiano]. Pensei: caramba, estão começando a mudar esse negócio. Tá na hora de fazer aquele projeto.

E sua ideia já era produzir as tintas, fabricar? Sim, eu queria fazer cada tom de pele, procurei várias fábricas de tinta. Acabei fazendo junto com a Águia, que foi a primeira tinta a óleo que usei na vida, era a mais barata quando comecei a pintar. Aí, resolvida essa questão industrial, fui criando a história, inventei uma marca, um nome, um logo, trabalhei com um monte de gente – um designer gráfico, Marcos Vale, fez o logo; a Ovo, de São Paulo, fez o objeto, a caixa; teve a fábrica de tubo de tinta. Depois o [joalheiro] Antonio Bernardo desenvolveu uma ferramenta pra cravar a marca à mão, tubo por tubo. E aí entram gráfica, etiqueta, fora a equipe do ateliê. É uma interação grande.

Como é seu staff hoje? Seu trabalho, de grandes proporções, exige uma equipe grande ajudando você? Eu tenho trabalhado muito em grupo. Nos anos 90 bem menos, era tudo menor. Mas o pavilhão de Inhotim, por exemplo, foi uma produção muito grande. O Celacanto provoca maremoto [obra que ocupa uma sala da galeria de artista em Inhotim], é um políptico de quase 200 azulejos. Aqui no ateliê a equipe fixa é pequena, mas tenho várias assistentes volantes, que me ajudam na parte de produção artística, de acordo com o trabalho. Nessa série de agora, todos os quadros foram pintados por retratistas. Os retratos que vão para Nova York foram feitos pela Ana Moura, que volta e meia colabora comigo. E estes aqui [mostra a série de 33 quadros que estarão na exposição em São Paulo] foram feitos por retratistas que eu nem conheço. Mandei fazer na China. Eu precisava de uma base neutra e meio seriada, achei um fornecedor e é sensacional o resultado. A agilidade deles foi o que me permitiu fazer essa obra. Trinta e três quadros é uma quantidade muito grande.

 

“Cada indivíduo tem mesmo uma cor de pele diferente; é quase inútil fechar em classificações”

 

 

Como você chegou a esse número, 33? Eu desenvolvi 33 cores. Eu queria fazer as 136, mas aí achei inviável uma caixa com 136, tinha que pensar em um número. É totalmente aleatório, pensei mais ou menos em relação às dimensões da caixa... e 11 é um número que eu gosto, nasci em 11/11, seriam três filas de 11... Sei lá, aleatório. Ficaram 33 cores, e por isso são 33 retratos iguais, cada um sofrendo a interferência de uma cor.

Você acha que inventar todos esses nomes pra definir a própria cor é um jeito de o brasileiro não assumir a cor negra? A Lilia Schwarcz, com quem você acaba de fazer um livro, fala disto: a maioria dessas respostas traz variações de branco. Não sempre, mas muitas vezes sim, os nomes disfarçam uma identidade que é negra. Falar queimada de praia, ou baiana, é uma maneira de negociar a questão, de não dizer que é negro, o que revela uma presença forte do racismo. Por outro lado, há essa total impossibilidade de realmente determinar cor de pele. Cada indivíduo tem mesmo uma cor de pele diferente, é quase inútil fechar em classificações.

Você já presenciou episódios de racismo? Sim, isso está embutido e disfarçado, de mil maneiras. Já presenciei em clube, por exemplo, a coisa de a babá só entrar uniformizada. Tem um clube aqui no Rio que até parei de frequentar por não deixar babá almoçar junto, no restaurante. Nos lugares onde a gente circula, as festas, a vida social, negro é minoria. A única exceção, que vi recentemente, foi o batizado do Roque, filho da Regina Casé. Gente de várias cores de pele realmente confraternizando de maneira igual. A Regina é espetacular nisso, né? É uma coisa natural na vida dela.

Você tem empregados negros, babá? Tenho empregados de várias cores e procuro resguardar o direito civil das pessoas. O problema é quando não respeitam nem mesmo o direito de um trabalhador. É uma coisa que tem um impacto social muito grande.

Você é a favor das cotas para negros nas universidades? Eu já fui contra, porque entendia como uma política racista. Mas acho que a nossa dívida é tão grande que mudei de ideia. É importante ter médicos negros, bons profissionais negros, e hoje esse espaço tem que ser aberto assim mesmo. Já que não é aberto naturalmente, então é legal ter um mecanismo que abra essa porta. Pode parecer injusto, tem muita gente pobre que é branca, mas é um passo no sentido de resguardar um direito, um lugar. Temos essa dívida. Quando a gente vê os números do que foi a imigração africana para o Brasil, é muito chocante. E não temos memória disso, a gente não sabe nada da história do tráfico negreiro, quais foram as revoluções negras no Brasil, os quilombos. Assim como não sabe sobre índio, outra dívida grande que o Brasil tem. Foram dois genocídios.

 

“A mostra no MaM (em 2012) foi grandiosa, e teve muito público, muita imprensa. Tinha fila!”

 

Você é otimista em relação a esse assunto? Sendo o racismo tão velado, mas ao mesmo tempo tão arraigado na cultura, dá pra acabar com ele? Não tenho propriedade pra falar, mas o reconhecimento de que somos racistas é um primeiro passo. Depois, as políticas objetivas, como as cotas. Todo trabalho intelectual e artístico também é importante na construção de uma subjetividade voltada pra esse fim. É importante desconstruir padrões e a arte, o cinema, a literatura ajudam a remapear essas relações. A gente ainda usa conceitos como “boa aparência”, “lugar de gente bonita”. É preciso reabitar esses lugares de gente bonita de todas as cores, reprogramar esses valores.

Pensando na sua trajetória, quando você considera que virou gente grande? Quando a sua obra atingiu um nível de maturidade e reconhecimento que a colocou num outro patamar? Ah, a gente vai crescendo, não existe um momento, único. Teve a exposição no CCBB [Centro Cultural Banco do Brasil] em 2000, Azulejões, que muita gente viu. E que em 2003 foi pro MoMA. Depois veio a primeira grande individual na fundação Cartier [em Paris], em 2005. Foi quando vi pela primeira vez meu corpo de trabalho reunido. Tinha o Celacanto provoca maremoto e coisas mais antigas ocupando toda a fundação. Em 2008, teve o pavilhão em Inhotim, um lugar para exposição permanente da obra. E aí veio a exposição panorâmica, no Mam de São Paulo, e depois do Rio. Aquilo ali, sinceramente... Nossa Senhora. Foi muito louco.

Por quê? Tinha obras desde 92, obras que eu não via havia 20 anos. E aí, ao ver tudo reunido, você sente que construiu alguma coisa, que tem realmente um lastro. Tudo bem que eu já tinha reunido em livro [Entre carnes e mares, da editora Cobogó]. Mas a mostra do Mam foi grandiosa, e teve muito público, muita imprensa. Fiquei impressionada. Tinha fila! [Risos.]

Você descobriu que era famosa. É muito engraçado isso. Quando eu era pequena, minha mãe colecionava Mestres da pintura e eu vivia folheando esses livros – sempre que perguntam da minha primeira experiência com a pintura eu cito isso. Aí, agora, recentemente, a Folha [de S.Paulo] lançou uns fascículos com artistas brasileiros. E aí tem eu [risos]. É muito legal quando as pessoas passam a te conhecer não só pelo nome, mas pela obra que você fez. Na panorâmica do Mam tive esse sentimento, de ver o que eu fiz em todo esse tempo, de enxergar um fio de narrativa que faz sentido.

A aprovação dos outros é muito importante? Eu acho que faria o que faço de qualquer maneira, mas é muito melhor quando gostam, claro. A história do ser humano é isso, né? Aceitação e rejeição. Quando as pessoas têm empatia é muito gratificante. Quando ecoa, quando afeta. Até mesmo quando odeiam, o porquê disso é significativo.

Queria voltar um pouco na sua trajetória pessoal. Quanto tempo você viveu em Brasília? Não lembro direito, mas acho que foi de 68 a 72, ou 73. Sou de novembro de 64.

Depois vocês voltaram pro Rio? Quão carioca você é? Muito. Nasci aqui, me identifico com a cidade, eu sou daqui. E o carioca é muito preso ao Rio de Janeiro, nunca achei outra cidade onde eu quisesse morar. Quer dizer, morei um tempo na Cidade do México. Fui fazer um projeto lá no início dos anos 90 e fiquei fascinada. Viajei pelo México inteiro. A Cidade do México, embora pareça caótica, tem uns oásis... é uma cidade que vai engolindo várias cidades, vários pueblos. Fui morar numa parte da cidade chamada Tlaltan, que era maravilhosa, agradável, tinha quase um jardim botânico de cactos dentro de casa.

Quanto tempo você ficou lá? Eu morava aqui e lá, não me desfiz da minha casa no Rio. Fiquei tão fascinada pela diversidade, pela riqueza cultural e pelo povo mexicano que durante dois anos fiz longas temporadas lá, ficava seis meses.

Você ainda volta lá? Voltei só no ano passado e estranhei muito. O México mudou muito.

 

“Eu acho que faria o que eu faço de qualquer maneira, mas é muito melhor quando gostam, claro”

 

O Rio também, né? Claro. Bom, o Rio da minha adolescência, nem se fala. Ipanema era um bairro supertranquilo, calmo. Aí veio o Sergio Dourado, construtor que dominou o mercado imobiliário, construiu aqueles prédios enormes. Eu era da época do píer, ia à praia com meu pai todo dia, era sensacional.

Na sua casa existia o tema ditadura? Como você viveu aquele período? Eu era muito criança, não tinha consciência disso. Tinha 5, 6 anos em 1970. E a Aeronáutica não era barra-pesada, meu pai era militar porque queria ser piloto... não tinha esse peso dentro de casa.

Mas na escola, na vida em volta, esse assunto não era presente? Na infância não. O que eu lembro é que meu pai era muito nacionalista, patriota, tinha esse valor Brasil, Amazônia, povo brasileiro. E eu via isso como uma coisa positiva dele. E minha mãe sempre fez muito trabalho comunitário... Eu só fui sentir um pouco do que era a ditadura quando entrei na faculdade, que virou uma coisa muito pobre, em recursos, em discussão, em tudo. Senti os sintomas daquele momento, um empobrecimento. E senti intensamente o processo de abertura política, nos anos 80.

Você viajou muito com seus pais? Pelo Brasil, sim. Eu vivi uma época em que viajar era muito caro, saí do Brasil a primeira vez com 21 anos, para Nova York.

E você fez uma viagem à China que foi muito importante pra sua vida, né? Como você foi parar lá? Meu professor de pintura, o Charles Watson, fazia tai chi chuan. Aí comecei a fazer também e fiquei muito envolvida, dei aula e tudo. Por causa disso, me envolvi com um grupo de acupuntores que ia pra China fazer um curso, de medicina tradicional chinesa. Era muito difícil ir à China nessa época, então quando vi essa chance me infiltrei no grupo. Foi sensacional. Acabei fazendo uma viagem maior, fiquei quase três meses. Era difícil, muito fechado, as pessoas da minha idade não tinham a menor ideia do que era Beatles, por exemplo.

Isso em Pequim? Em Xangai.

Em que ano? 1993.

Sua relação com tai chi e medicina chinesa continuou ou se perdeu? Eu fiz durante uns 12 anos, era aplicada, ia todo fim de semana fazer aula em São Paulo com o Chan Kowk Wai, um mestre de shaolin norte. Eu gostava muito das artes marciais. Comecei a aprender chinês, gostava dos pictogramas. Sempre ia buscando paralelos entre a minha formação artística e aquele universo. Aí tomei contato com a porcelana da dinastia Song, que era toda craquelada, e incorporei isso ao meu trabalho.

Você pesquisa muita coisa, seu trabalho tem infinitas referências. Você sempre foi estudiosa, cdf? Eu era uma aluna ok. Faço pesquisa, gosto muito, mas não é que eu seja uma acadêmica. É um conhecimento que vem mais da paixão, do contágio, da curiosidade. A figura do cdf me parece mais uma pessoa que fica parada estudando... minha história é mais movimentada. Tem uma diversidade grande, referências, viagem que se mistura com livro, com uma prática que eu faça, com música, cinema, o tipo de arquitetura de algum lugar.

 

“Tive um amor que se tornou grande amigo, o Bernardo [Paz], e um amigo que se tornou meu amor, o Pedro [Buarque]”

 

O livro que você está lançando mostra essas conexões. Foi complicado organizar as histórias? A ideia original da Lilia [Schwarcz] era contar a História, com H maiúsculo, e colocar os meus trabalhos seguindo o fluxo, cronologicamente. Aí eu falei: não, vamos fazer uma coisa louca, vamos escrever as histórias de todas as referências dos trabalhos. Contar a História, mas de forma carnavalizada. Ela abraçou a ideia, foi se empolgando. Foi maravilhoso o trabalho. E ela me trouxe também muita informação, aprendi muito com o texto desse livro, era um vai e volta. Tanto que a maior dificuldade foi pôr um fim no livro.

Ela diz isso no livro. E diz que suas obras também nunca acabam, elas são arrancadas de você. Porque tem uma hora que tem que acabar, né? Eu às vezes tenho que me segurar, porque vejo uma obra e tenho vontade de mexer. Na panorâmica do MaM, era uma loucura, eu querendo mexer nas coisas e diziam “Você não pode fazer isso”. E eu falava: “Mas a obra é minha”. “Não, é da Tate!”. [Risos.] Por mim, sempre daria pra ir mexendo.

Em geral como é seu dia típico? Queria saber da vida mais prosaica. Ah, é igual à de todo mundo, minha vida não tem nada de mais.

Incomoda você, falar dessa rotina particular? É que existe a tendência a achar que artista é especial. Uma vez fui na escola da Catarina, estavam falando de profissões e eu fui lá falar da minha. Aí perguntam: “Mas você trabalha todo dia?”. As pessoas acham que artista não trabalha todo dia. “Nossa, achei que você só ia pro ateliê quando se inspirasse.” Não é assim. Meu dia a dia é normal, fico em casa, tenho a rotina de mãe, de cuidar de casa e trabalhar. Adoro participar de escola, levar, buscar, ser amiga das outras mães. E tenho uma vida social bastante intensa, gosto de sair, tenho muitos amigos.

Ficar famosa faz com que esse lado da vida, particular, também fique mais exposto. Como você lida com isso? A imprensa hoje cultiva muito isso. Antigamente você só sabia de detalhes da vida de um artista numa biografia. Graças a Deus não tenho uma cara conhecida, não preciso ter preocupação de lidar com isso. E procuro falar só de arte mesmo. Se me procurarem pra uma pauta sobre, sei lá, comportamento de praia, não vou falar. Não julgo, não acho ruim, até leio essas coisas nas revistas, mas não serve pra mim.

Quantas vezes você foi casada? Casada mesmo, só uma, com o Bernardo [Paz]. E agora com o Pedro. Nós vamos nos casar.

Com cerimônia, papel? Sim, tudo.

Como você conheceu o Pedro? Eu não lembro exatamente como a gente se conheceu... ele sempre frequentou o meio de artes plásticas, é filho de um colecionador, depois ele próprio começou a colecionar. E eu era amiga da mãe dele, a Heloisa Buarque, que foi curadora do Manobras [Radicais, exposição que reuniu artistas mulheres em 2006].

A gente se conhece há mais de dez anos e foi ficando próximo, mas nunca tinha passado pela cabeça algo que não fosse amizade. E aí, quando os dois se separaram [ele da atriz Mariana Ximenes, Adriana de Bernardo Paz], a gente se encontrou, se apaixonou e ficou junto. Tive um amor que se tornou grande amigo, o Bernardo, e um amigo que se tornou meu amor, o Pedro. Tem uma crônica do Rubem Braga, As coisas boas da vida, que cita essa situação – amor virando amigo e amigo virando amor. São de fato duas das melhores coisas da vida.

Você mudou muito desde que é mãe? Mudei muito por vários motivos na vida, inclusive esse. Não vamos começar com essa conversinha de revista feminina. É chato.

Eu queria falar também sobre a ideia de envelhecer. Você faz 50 anos em 2014... Isso também configura conversinha? Ah, tem coisa mais interessante pra falar.

Mas falando só de trabalho a gente não entende quem é a mulher. Bom, sobre essa coisa da idade, 50 anos ainda não é muito velho, né? Acabei de ter uma filha! Minha sogra fala que quando chegam os 70 é que é mais difícil. Mas eu tenho uma assistente aqui que outro dia estava deprimida por estar fazendo 26. Isso tudo é muito relativo. Minha mãe é incrível nesse sentido, inteiraça, supersaudável, nunca operou nada. Meu pai também, minha avó. Não vi decrepitude em ninguém da minha família. Pretendo trabalhar até morrer, há muitos artistas longevos, Picasso trabalhou até mais de 90 anos. Miró, Louise Bourgeois.

 

“Ganhei US$ 18 mil com aquele quadro (de 2001, vendido por US$ 1,7 milhão em um leilão, em 2012)”

 

O que você sentiu no dia em que um quadro seu foi vendido pelo maior valor já alcançado num leilão por um artista brasileiro [Parede com incisões à La Fontana II, de 2001, foi vendido em Londres em 2012 por US$ 1,7 milhão]?. Nossa, a gente saiu gritando aqui no ateliê. Gritando, que loucuraaaaa! [Risos.]

Você fica sabendo quem comprou o quadro? Não necessariamente. Esse, eu sei, mas nem sempre é assim. O que é importante esclarecer, porque fazem muita confusão, é que veem aquele valor e acham que eu que ganhei esse dinheiro. Eu vendi aquele quadro em 2002, na minha galeria de Londres. A galeria fica com metade do valor. Ganhei US$ 18 mil com aquele quadro. Aí um colecionador, Luis Augusto Teixeira de Freitas, comprou o quadro em Portugal. Depois, colocou no leilão da Christie’s e o quadro alcançou esse valor.

Mas isso reflete no seu preço hoje, não? Reflete, mas é pouco. Respinga só. É longe desses valores. Isso acontece num leilão porque tem três pessoas querendo muito um quadro naquele momento. No dia seguinte pode não ter três pessoas dando lances, e o valor ficar muito menor... Agora, é bom? Claro que é bom. É sensacional um quadro de uma artista brasileira alcançar esse patamar num leilão internacional. Mas infelizmente quem ganhou esse dinheiro foi o Luis Augusto Teixeira. Soube comprar na hora certa e vender. Me dá sempre um pouco de tristeza quando alguém vende um trabalho meu.

Por quê? Ah, porque deixei de fazer parte da coleção dele. Por outro lado, é uma alegria ver que há um colecionador tão comprometido com a minha obra, a ponto de pagar esse valor por um quadro.

Você ficou rica com seu trabalho? Se considera rica? Sim, tenho uma vida confortável. Num país como o Brasil, sim, claro. Mas o que é ser rica? Eu vejo assim: sou rica no momento em que não preciso mais pensar em dinheiro. Se você deixa de fazer uma viagem ou precisa ficar contando a grana pra poder comprar uma coisa, ou passa o dia preocupada com isso, claro que é ruim. Mas o contrário também é. Ganhar muito dinheiro e passar a se preocupar em manter um padrão de vida caríssimo e complicado de sustentar. Há 20 anos sou muito confortável com dinheiro. Não preciso deixar de fazer nada por falta de dinheiro, mas ele não virou um mote.

Como é sua relação com o Bernardo Paz e com Inhotim hoje? Você vai muito lá? Vou, adoro Inhotim. Em janeiro a Catarina fez aniversário e pediu que a gente fretasse um ônibus pra levar toda a turma do colégio pra lá. Achei uma graça. Fomos num ônibus de dois andares, várias crianças, os pais. E a Aristela, que eu amo, esposa do Bernardo, fez uma festa linda pra ela lá. Me dou muito bem com eles, adoro Bernardo, Aristela, o Aquiles, filhinho deles. A gente é muito ligado, são minha família.

Deve ser uma coisa meio maluca pra uma criança pensar que uma coisa tão grandiosa como aquela é a casa dela. Aliás, como você se sentia morando ali? Pra ela é a casa dela mesmo, ela cresceu ali... no dia em que as crianças foram embora, ela falou uma coisa pra mim: “Mãe, que bom que todo mundo veio, porque agora quando eu falar em Inhotim todo mundo vai saber o que é [risos]”. O que acho importante é que o Inhotim é aberto para o mundo. A arte contemporânea tem sido tão evidente lá fora, há tantos brasileiros valorizados, Cildo [Meireles], Ligia Clark, Helio Oiticica, e a gente não podia ver a obra dessas pessoas em nenhum museu. Não tô nem falando da minha geração! Tô falando desses caras. Só tinha exposições temporárias, agora existe o Inhotim. É uma generosidade enorme do Bernardo fazer da casa dele a casa de todos. Porque a maioria das pessoas que têm dinheiro no Brasil faz o oposto, né? 

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