Menina mulher da pele preta

por Fernando Luna
Tpm #141

Só existe uma coisa mais desafiadora do que ser negro no Brasil: ser negra

Só existe uma coisa mais desafiadora do que ser negro no Brasil: ser negra.

Além do racismo, mais de 50 milhões de brasileiras negras ainda enfrentam o machismo. Se às vezes a subjetividade torna difícil apontar atitudes racistas ou machistas, as estatísticas revelam facilmente suas consequências.

As mulheres brancas ganham apenas 67% do salário de homens brancos, que estão no topo da pirâmide econômica. Homens negros recebem ainda menos, 52% dos vencimentos deles. No final da fila, mulheres negras embolsam somente 38% do valor, de acordo com dados do censo de 2010.

A mortalidade materna de mulheres negras está 65% (você leu certo, sessenta e cinco por cento) acima da de mulheres brancas, por conta da diferença na qualidade do tratamento recebido no sistema de saúde, conforme a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde.

Resumindo, mulheres têm mais obstáculos a transpor do que homens. Negros, por sua vez, mais do que brancos. Já mulheres negras costumam nascer diante de um Himalaia de desigualdades históricas.

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Daí dona Jacira rimando na faixa “Crisântemo”, com seu filho Emicida – ela dá um depoimento destemido para a revista. Daí a homenagem de Mano Brown à dona Ana e a todas as mães solteiras de um promissor vagabundo, em “Negro drama”. Mulheres que preferem seguir em frente a se vitimizarem.

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Nada como um dia após o outro dia. A Lei Áurea é de 1888. A novela Escrava Isaura, de 1976. Mas, na estrumeira dos comentaristas de internet, quando Lucélia Santos anda de ônibus não se trata de uma das atrizes mais importantes da TV brasileira. Só enxergam a Escrava Isaura.

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Em 1900, Joaquim Nabuco, autor de O abolicionismo, lançou Minha formação, mistura de memórias e pensamentos sobre o Brasil. Ali, escreveu que “a escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou (...) Quanto a mim, absorvi-a no leite preto que me amamentou”.

Em 2014, muito tempo depois, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro fala ao jornal português Público. Alerta que “a escravidão venceu no Brasil, ela nunca foi abolida. (...) É o mito de que no Brasil todas as coisas se resolvem sem violência. Sem violência, entenda-se, sem revolta popular. Com muita violência, mas sem revolta. A violência é a da polícia, do Estado, do exército, mas não é a violência no sentido clássico, francês, revolucionário”.

Suavidade e violência são nossas coisas, são coisas nossas.

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Jorge Ben Jor é o alfa e o ômega. Sua­ve e violento, Martin Luther King Jr. e Malcolm X.

Em 1974, gravou pela primeira vez sua canção “Zumbi”, em A tábua de esmeralda. A cadência bonita do samba contrasta com a brutalidade do grande leilão, onde há “uma princesa à venda que veio junto com seus súditos, acorrentados num carro de boi”.

Em 1976, enquanto o movimento negro ganhava força no país, ele decidiu regravar a música no África Brasil (e a rebatizou com o mesmo nome do álbum), numa levada funkeada e agressiva. Já começa gritando “eu quero ver o que vai acontecer quando Zumbi chegar”, ameaçador.

São duas maneiras distintas de exprimir força. Como o sorriso de Elisa Freitas e o soco de Ellen Oléria, mulheres negras entrevistadas nesta edição especial sobre racismo, elaborada em um diálogo com a revista Trip (vai lá ouvir o outro lado).

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A origem da expressão “para inglês ver” estaria nas “fingidas providências tomadas pelo governo imperial para fazer cessar o tráfico de africanos, depois do compromisso com a Inglaterra”, de acordo com os apontamentos de João Ribeiro (1860-1934).

Desde sempre, a tal democracia racial brasileira é para inglês ver. Até quando?

Fernando Luna, diretor editorial

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