Não, a culpa não é sua

por Natacha Cortêz
Tpm #133

Tainá Müller, Karina Buhr, Bianca Comparato e outras mulheres entram na briga contra a cultura do estupro

Uma em cada cinco mulheres será vítima de estupro (ou tentativa de) no decorrer da vida. Um número maior passa por constrangimentos que caracterizam violência sexual. Mudar isso inclui punir agressores e entender: mulher não é mercadoria. E minissaia, decote ou bebida não justificam comportamentos criminosos.

Juliana estava em uma festa e se recusou a ficar com o cara que a agarrou. Foi descabelada no meio da pista e ouviu gritos como “vadia, gorda, baranga, não te queria mesmo”. Kimberly foi violentada por um colega da faculdade, que invadiu seu dormitório no campus depois de ter forçado a barra na paquera em um bar. Karina saiu para comprar açúcar e, na volta, foi encurralada. Na rua. Gritava, chutava, doía. Escapou, mas acabou humilhada na delegacia. Amanda foi estuprada por três colegas da universidade em uma festa de república – para algumas pessoas, “ela pediu por isso”. Tainá brigou com o namorado por usar uma saia, segundo ele, curta demais. Também ouviu a frase clássica: “Depois não reclama se for estuprada”.

Não é coincidência se você já viveu ou soube de uma história parecida com essas. Elas são reais e, se não aconteceram, ainda vão acontecer com você ou sua irmã, sua prima, sua colega, sua filha. É o que afirma a estatística da Organização das Nações Unidas: em todo o mundo, uma em cada cinco mulheres se tornará vítima de estupro ou tentativa de estupro no decorrer da vida. Há outros índices assustadores. Segundo o Banco Mundial, por exemplo, entre 15 e 44 anos, as mulheres correm mais risco de estupro e violência doméstica do que de desenvolver câncer, sofrer um acidente ou enfrentar uma guerra.

“Em todo lugar, o agressor tenta justificar a violência com alegações como ‘ela provocou’ ou ‘não foi nada’”

No Brasil, o SUS (Sistema Único de Saúde) recebeu em seus hospitais e clínicas, em média, duas mulheres por hora com sinais de violência sexual em 2012, segundo dados do Ministério da Saúde.

É o preço que a mulher paga por ter menos força física que o homem? Por viver em uma sociedade patriarcal? Para Andrea Borelli, doutora em ciências sociais e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Mulher na PUC-SP, trata-se de uma questão cultural endêmica: “A mulher é vista, sim, como mercadoria. Ela é objeto do desejo do outro, é encarada como disponível, como oferta”.

Patrícia Kieger Grossi, professora do curso de serviço social da PUC-RS e especialista em violência de gênero e políticas públicas, acrescenta que a cultura da virilidade, que impõe ao homem o papel de provedor e possuidor das mulheres, tem relação com os números alarmantes de casos de assédio. “Uma das questões que os agressores trazem muito é a de ver a mulher como posse. Há uma tentativa de anular e coisificar o outro. O estupro é desejo de se impor.” Seu trabalho nos Estados Unidos e no Canadá a fizeram concluir que esse tipo de violência não é exclusivo de países pobres e sem educação. “Em todo lugar, o agressor vem com sua visão machista, tentando justificar a violência com alegações como ‘ela provocou’ ou ‘não foi nada’. Em geral, eles têm histórico de violência na família, presenciaram situações violentas contra a mãe. Aprenderam a violência”, explica.

O machismo e a tentativa de coisificar a mulher aparecem em grandes e pequenos detalhes do nosso cotidiano, como no fato de pagar menos – às vezes nada – para entrar em uma balada. Juliana Monteiro, 22 anos, aluna do último ano do curso de publicidade da ESPM, em São Paulo, e cofundadora do Coletivo Chute, grupo no Facebook que discute questões feministas, percebeu que isso não acontece porque o mundo é legal com a mulher – e sim porque elas são um objeto em uma festa: junto com a música e a cerveja, “festa boa tem mulher”. “O próprio passado escravista do Brasil contribui com essas configurações. Estamos acostumados a ver o outro como objeto”, explica Andrea.

Karina Buhr também se deu conta disso. “Uma amiga esteve na Serralheria [bar de São Paulo] um tempo atrás e disse: ‘Poxa, aqui é um dos únicos lugares em que mulher paga igual a homem’. Aí uma menina ao lado disse: ‘Graças a Deus!’. É isso. A gente é colocada o tempo todo como objeto. E de decoração. Tem que agradar, é sempre o ponto de vista dos homens. Pior que isso fica na gente”, lamenta.

É tudo estupro
Em agosto de 2009, a lei brasileira passou a ver atos violentos de cunho sexual não consentidos – como tocar o corpo, forçar sexo oral – como estupro, e a denominação “crimes contra os costumes” mudou para “crimes contra a dignidade sexual”. Agora o termo estupro abrange um espectro de atos agressivos, além da penetração. De acordo com o artigo 213 do Código Penal brasileiro, “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” é estupro. Antes, qualquer caso em que não houvesse penetração vaginal era tratado como atentado violento ao pudor. Para a promotora Gabriela Manssur, membro da Comissão Nacional de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, a mudança é positiva, mas pode ter atrapalhado a punição justa do agressor. Isso porque, quando eram dois crimes diferentes, a pena era aumentada para cada ato da agressão. “Mas nesses casos eu denuncio como estupro por tantas vezes e aumento a pena”, afirma.

O grande mérito dessa lei, segundo Daniela Pedroso, psicóloga do Núcleo de Violência Sexual e Aborto Previsto em Lei do hospital Pérola Byington (instituição em São Paulo que é referência de atendimento a mulheres agredidas) é que a alteração facilitou a assistência em situações de violência contra mulheres alcoolizadas e em estado alterado por drogas. Agora esses episódios são enquadrados como estupro de vulnerável, que é considerado mais grave, com pena maior, que passa de seis a dez anos de prisão para de oito a 15. “Mudou mesmo para a mulher”, analisa.

Celi Paulino, delegada titular da 1ª Delegacia da Mulher da Cidade de São Paulo, explica que, sim, um beijo forçado ou uma passada de mão nos seios podem ser considerados estupro. “É crime do mesmo jeito. Não importa se houve violação física. Se o agressor prensou a vítima de forma que não tinha como se desvencilhar, por exemplo, já é estupro, já é tentativa”, afirma. “O que não caracteriza estupro é quando não acontece de forma violenta.” Cantadas também podem gerar processo contra o agressor, mas como injúria. Porém, avisa a promotora Gabriela Manssur, tudo depende das circunstâncias e da violência: “Não é comum que esses casos sejam levados adiante. Não é o Ministério Público quem denuncia [diferente do estupro], mas a própria vítima. E as mulheres não seguem em frente porque precisam arcar com um advogado. Geralmente casos de assédio e injúria que chegam à condenação ocorrem na esfera trabalhista”. Agressões como passada de mão na bunda, podem, sim, resultar em indenização. Foi o que aconteceu em 2008, quando a vara do Tatuapé (zona leste de São Paulo) condenou um agressor a pagar 13 dias-multa (valor que vai de R$ 293,80 a R$ 44.070, de acordo com a decisão do juiz) por ter feito isso com uma mulher.

“A gente tem que dar credibilidade aos direitos da vítima”

Infelizmente, a lei não garante que a mulher seja sempre atendida adequadamente depois da violência sexual. A cantora Karina Buhr que o diga. Transtornada logo após sofrer um ataque na rua em Recife, foi à delegacia. “O delegado perguntou o que aconteceu. Respondi: ‘Tentativa de estupro’. E ele, irônico: ‘Não, o crime quem define sou eu. Só me diga o que ocorreu’. Nem me pediu uma descrição do cara. Podia ser o mesmo que estava estuprando várias mulheres na área nos últimos meses. No fim, só olhou meu corpo, viu o braço e a perna vermelhos e registrou como tentativa de assalto. Um cara sem noção alguma. Foi o dia que entendi na prática por que tem que existir delegacia da mulher”, diz.

Não só delegacia, aliás. Gabriela Manssur acredita que a implementação de juizados e promotorias especiais para mulheres faça grande diferença, porém tudo depende da boa vontade do Tribunal de Justiça de cada estado. É um processo complexo, mas está caminhando: o primeiro juizado especial em São Paulo foi criado em 2010 no centro da cidade e, até agora, já existem sete regionais só na capital. “A gente tem que dar credibilidade aos direitos da vítima e à história que ela conta. Em uma vara especializada, isso tem mais chance de acontecer. É por isso que pressionamos tanto ao lado de movimentos sociais”, considera. E conclui: “Um promotor que acredita que esse é um problema muito mais social do que criminal vai se esforçar mais”.

Propensas à violência?
Longe do mundo das leis, no íntimo de cada mulher, talvez o que melhor caracterize o estupro seja a impossibilidade de reagir. “A violência pra mim está quando não existe escolha. Esse é o limite. Se eu posso dizer ‘não’, vou dizer. Mas e quando me vejo sem alternativa?”, conta a atriz Bianca Comparato, 27 anos, que passou por uma situação assim logo no primeiro beijo. “Foi a história que mais me violentou. Eu tinha 13 anos e meu primo, quase 30. Estávamos na casa de campo da família, jogando damas até tarde da noite. Todos dormiam. Ele me pressionou até que me beijou. Não foi vontade minha, eu estava assustada, acuada. Me senti mal, até culpada. Chorei por dias.”

A atriz Tainá Müller, 31, diz nunca ter sofrido violência grave, mas passou por inúmeras situações machistas, “coisa que toda mulher brasileira já sofreu”. Ela se lembra de uma em especial, relacionada à roupa. “Um namorado da adolescência se incomodava que eu usasse minissaia. Um dia perguntei o porquê daquilo e ele respondeu: ‘Se um cara te pegar na rua não adianta reclamar’. Sim, ele achava que na maioria das vezes era a mulher que provocava o estupro, pela forma de se vestir ou de se comportar.”

Parece absurdo? Então pense em quantas vezes você foi aconselhada a usar uma roupa mais “comportada” a fim de evitar ataques na rua. Isso vai se tornando uma voz da consciência com o tempo. Uma obrigação. Bianca Comparato se incomoda com essa limitação: “Adoro correr de short. Mas não uso mais, só quando acordo corajosa. Depois que ouvi uma ofensa nojenta de um cara enquanto me alongava, fiz concessões. Se quero evitar constrangimentos, seja na balada, no trabalho, onde for, repenso minha roupa. Mas odeio, não quero isso”, reclama. Karina Buhr é avessa à ideia: “Jamais, jamais me senti culpada ou com medo de sair sozinha de roupa curta. Mas entendo que não vivemos numa liberdade. País liberal? Não é nada, é liberal pra gostosona ficar na praia. Na real é noia! E sem perceber você acaba entrando no jogo”.

Claro que evitar looks ousados não evita violência. Daniela Pedroso, que tem ouvido relatos de vítimas de estupro nos últimos 15 anos, afirma que a roupa curta e decotada não exerce a influência que imaginamos. “A gente espera ouvir que elas estavam usando roupas transparentes e provocantes. Mas não. Muitas vezes, nada estético chamava a atenção nessa mulher”, afirma. A psicóloga acredita que muitas vezes a mulher é alvo por causa da oportunidade, do ‘azar’ de estar ali, de ser a primeira que o estuprador viu. Outras vezes, simplesmente foi vista como mais fácil de estuprar, por algum critério subjetivo do agressor.

Juntando estilhaços
A história de Amanda, estudante da Escola de Engenharia da USP, no interior de São Paulo, confirma que não há nada que a mulher faça que “facilite” o estupro. Há um mês, a jovem de 21 anos foi violentada por três colegas da faculdade em uma festa. Vestia jeans e uma malha larguinha, sem decotes, e (achava que) conhecia bem quem a acompanhava.

Poucos imaginam o quanto é doloroso o pós-estupro. É o que ela vive neste momento: “Por enquanto, eles estão livres, eu não. Como se já não bastasse a merda em que isso transforma sua existência, ainda tem gente falando mal, dizendo que você mereceu, que você estava pedindo. Não consigo estudar, não consigo dormir, tenho ódio de ir pra faculdade”, revela.

São todos sentimentos típicos do estresse pós-traumático, segundo a psicóloga Cornélia Rossi, presidente da Associação Brasileira do Trauma. “Também recebo pacientes com queixas de dor ao ter relações sexuais, ou frigidez”, relata. A experiência é traumatizante, uma bomba de dor. Mas pode ser superada. “A mulher não precisa sofrer sozinha. O trabalho do psicólogo é transformar o evento traumático em uma lição de vida, em uma compreensão de que a pessoa teve capacidade de superar a dificuldade”, explica.

“País liberal? Não é nada, é liberal pra gostosona ficar na praia. Na real é noia!”

A sensação de culpa é também comum nas vítimas de violência sexual. Segundo Cornélia, elas acham que poderiam ter feito algo, mas na verdade não têm o que fazer. Primeiro, são mais frágeis fisicamente. Segundo, o corpo responde muitas vezes com congelamento, com susto, com incapacidade de responder à luta. Para Patrícia Grossi, tudo faz parte de um jogo de pressão psicológica, e a sociedade ainda culpa a mulher: “O que ela fez pra ele agir desse jeito?”. Por isso é importante trabalhar o empoderamento feminino – o que inclui a independência financeira, que facilita romper com essa questão em todos.

A norte-americana radicada no Rio de Janeiro Kimberly Johnson, professora de ioga e terapeuta especializada em mulheres, conhece bem o longo caminho de cura e empoderamento depois do trauma. Nos Estados Unidos, um colega de universidade insistiu para acompanhá-la na saída de um bar. Ela, tímida, 17 anos, não conseguiu dizer não. Na porta de seu dormitório, ele a empurrou para dentro e a molestou. “Eu estava apavorada, ele forçou, me arranhou, me machucou. Desde aquele instante, mudei. Eu era alegre, comunicativa, fiquei vazia”, recorda. Kimberly fez terapia de grupo no campus – o que achou útil – e foi orientada pelos reitores a expor o caso no conselho da faculdade – o que achou péssimo. “Era um tribunal informal para alunos e professores, mas o pai do agressor era advogado e participou. Eu estava sozinha e dura de medo. A situação era uma farsa machista que não deu em nada”, lamenta.

A professora lembra que precisou de mais de um ano para recuperar sua força. Encontrou na prática de ioga instrumentos para alcançar a paz. Seguiu estudando remédios para aliviar o trauma. E hoje declara convicta que a terapia de experiência somática é uma ótima opção. O método, também adotado por Cornélia, é baseado nas percepções físicas, tratando as impressões deixadas pelo trauma. “O corpo é a ferramenta para recuperar a capacidade de dar a volta por cima do episódio”, explica a psicóloga.

Mas não são só as vítimas de violência que precisam de cura. A sociedade precisa. A historiadora Andrea Borelli acredita que a raiz dessa questão esteja ligada com o conceito de poder: “Assédio é uma demonstração de poder. Quem assedia é porque tem poder pra fazê-lo. Toda a questão da violência está baseada na premissa de que alguém tem poder sobre o outro”. 

“Foram pra cima de mim, arrancando minhas roupas. Comecei a gritar, chorar”

Amanda *, 21 anos, estudante de Escola de Engenharia da USP

“Há um mês fui convidada pra ir a uma festa em uma república. Eu já havia saído outras vezes com o cara que me convidou. Apesar de ter aceitado o convite, disse que não iríamos mais ficar juntos. Deixei claro que não tinha mais interesse nele. Ele concordou: era só uma festa mesmo, pra conversar com amigos, ouvir boa música e tal. Fui sozinha. Cheguei por volta das 20h30. Na casa estavam ele, um amigo que eu não conhecia, e logo chegou uma vizinha, que ia e voltava à ‘festa’. Bebi uma dose e dois copos de bebida alcoólica misturada com refrigerante. Em uma das vezes que a vizinha saiu, os dois meninos tentaram me agarrar – passaram a mão pelo meu corpo e me prensaram na parede. Assustada, pedi pra ir embora. Esconderam as chaves da porta. Corri pro quarto, eles foram atrás e pediram desculpas. Tranquei a porta e eles a forçaram; gritavam para que eu abrisse. Não abri. Acabou que três meninos (um que não estava lá antes) invadiram o quarto, foram pra cima de mim, segurando meus braços e pernas, arrancando minhas roupas. Comecei a gritar e me debater, pedindo pra que parassem. Um deles se levantou e continuou a olhar tudo da porta. Eu chorava muito. O que ficou na porta observava tudo e ria. Tive muita vergonha.

Há muitos detalhes que não consigo descrever. É uma confusão de tristeza, raiva, ódio, vergonha e de achar que todos estão perseguindo você. É não conseguir dormir, e é acordar com raiva de ter acordado, porque viver mais um dia vai ser horrível. Desestabilizou minha vida, a minha família. Como se já não bastasse a merda em que isso transforma sua existência, ainda tem gente falando mal, dizendo que você mereceu, que estava pedindo. Não consigo estudar, tenho ódio de ir pra faculdade, não consigo frequentar locais públicos, tenho medo de sair de casa, tudo de uma vez. Choro por tudo.

Pensei que, ao denunciar, poderia seguir com minha vida, mas não é assim. Estou presa e eles livres. Nenhuma mulher quer um estupro pra se promover. Ninguém acorda e diz ‘eba, hoje quero ser estuprada’. O processo está no início, e sob segredo de Justiça. Talvez demore um pouco, mas vou lutar pra que não fiquem impunes.”

*Amanda não pode revelar sua identidade

 

“A mulher caiu no chão, não levantou em 5 segundos, pode pegar”

Juliana Monteiro, 22 anos, estudante de publicidade da ESPM

“Apesar de estudar em uma das faculdades mais caras de São Paulo , já fui verbalmente e até fisicamente assediada em suas festas. Eventos universitários são famosos pelos excessos de bebida e violência contra a mulher. O mais absurdo é quando tentam, e muitas vezes conseguem, passar a mão onde não devem. Meninas reclamam dessa atitude criminosa que se tornou recorrente. Em um vídeo de uma festa, um garoto diz: “Sabe a lei dos 5 segundos? É assim: a mulher caiu no chão [de bêbada], não levantou em 5 segundos, pode pegar. Se continuar no chão, pode estuprar”. Coisas desse tipo me levaram a cocriar o Coletivo Chute, grupo no Facebook que discute medidas e ideias pra inibir a violência sofrida pelas mulheres [e, em alguns casos, pelos homens].”

 

“‘Depois não adianta reclamar’, ainda tive que ouvir”

Tainá MÜller, 31 anos, atriz

“Passados tantos anos depois que um namorado reprimiu a minha minissaia, deparei várias vezes com o machismo velado de uma cultura que ainda não aceita bem o fato de a mulher ter voz. Principalmente se essa mulher é considerada ‘atraente’. É como se fosse um grande paradoxo: o interesse sexual que se tem por uma mulher é inversamente proporcional ao respeito que ela merece. Isso é tratá-la como objeto. O jogo de sedução entre os sexos faz parte da natureza humana. Mas o fato de a mulher expor sua feminilidade não autoriza que o homem a ataque física ou moralmente.

Não se sabe se o alarmante número de denúncias de abusos sexuais no Brasil de fato cresceu nos últimos anos, ou se só agora as mulheres têm se encorajado a procurar ajuda. Vale refletir sobre as raízes profundas desse crime no país. É só pensar na nossa miscigenação. Vamos combinar que ela não aconteceu exatamente a partir do livre amor entre as raças, certo?

Reza a lenda que minha tataravó índia foi caçada no mato pelos cachorros de meu tataravô português, que a obrigou a “casar” com 12 anos de idade. O curioso é que, talvez por ter ouvido de amigos algum relato parecido sobre seus parentes, até pouco tempo encarava essa história de uma forma natural. Demorei para juntar os pontos e perceber que essa brutalidade faz parte da base de formação familiar brasileira. Mas e agora?

A onda de conservadorismo que surge como propostas na nossa política, com as brechas abertas pelo Estatuto do Nascituro, pela Cura Gay, Bolsa estupro e outras aberrações, é uma tendência assustadora para a qual devemos ficar atentas. Se nosso representante dos direitos humanos, Marco Feliciano, quer derrubar conquistas que achávamos irreversíveis, o sinal é de alerta. Em tempos de manifestações históricas, as mulheres com pensamento libertário não podem deixar de fincar o pé no que foi conquistado até aqui. Senão, daqui a pouco poderão opinar até sobre nossas roupas – e amparados pela Constituição.”

 

“Comecei a sentir nojo, enjoo dele”

Kimberly Johnson, 39 anos, professora de ioga

“Recorri à ioga para me ajudar com traumas de abuso e violência que sofri na faculdade. Depois de 11 anos de prática, fui estudar na Índia. E encontrei o professor a quem me rendi como meu guru. Por três meses, morei no ashram [comunidade espiritual] com ele, seguindo a tradição. Dormíamos lado a lado para que ele pudesse me acordar a qualquer hora para tomar lições. Mas a coisa ficou estranha. Sentia toques, tirava a mão dele de partes do meu corpo, como o peito. Perguntei se estava interessado em mim. ‘Exijo entrega total em todas as relações’, ouvi. Não foi minha razão que teve coragem de dizer não àquilo. Foi o meu corpo. Comecei a sentir nojo, enjoo dele. Meu corpo me mostrou que eu não poderia me trair. Eu disse não, ele se recusou a me ensinar. Fui embora. Depois desse assédio, levei nove meses para recuperar a saúde física e mental. Meu corpo gritou de todos os jeitos – infecções, tosses, crises. Que bom que consegui ouvi-
lo. E segui pesquisando maneiras para curar esse tipo de trauma. Quando sofremos violência sexual, geralmente congelamos ou saímos do corpo para lidar com a dor. Retomar o contato com o físico e com o poder interior é importante para curar. Algumas medidas que considero úteis:

• Observar com qual frequência você diz ‘sim’ quando gostaria de dizer ‘não’; quando faz rodeios para chegar ao ponto ou prefere fazer alguém feliz a satisfazer a si mesma. Pratique dizer ‘não’ e repare no seu corpo quando faz isso.

• Fazer atividades dinâmicas e de explosão, como boxe ou artes marciais. Acessar seu lado agressivo em um ambiente seguro ajuda a sair do papel de vítima.

• Compartilhar sua história. Pode ser em grupos de pessoas que passaram pelo mesmo ou com alguém de confiança. Culpa e vergonha são efeitos comuns, e o silêncio não ajuda a desmanchar esses sentimentos.

• Procurar um psicólogo ou terapeuta bem indicado. Não é fácil se reorganizar sozinha.

• Respeitar seus limites. Não insista em enfrentar pessoas ou lugares que ainda sejam difíceis. Deixe seu corpo guiá-la até onde ele estiver à vontade.”

 

 

“Eu começava a gritar e ele tapava minha boca”

Karina Buhr, 39 anos, cantora

“Era de tarde, foi há pelo menos dez anos. Tinha ido ao mercado. Morava em uma rua perto da avenida principal do meu bairro no Recife, Casa Amarela. Voltava para casa com um pacote de açúcar e um cara me atacou. Ele me prendeu em um muro e me agarrou com muita força, mordendo meu pescoço. Eu chutava... Me deu muito medo, ele estava me prendendo muito forte. Gritava e ele tapava minha boca. Chutava e ele prendia minha perna. De repente, ele se assustou com alguma coisa – não sei se passou um carro ou uma pessoa – e saiu correndo. O pacote de açúcar estourou, foi bem louco. Naquela época estava rolando muito estupro no bairro.”

 

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