por Letícia González
Tpm #128

Por que, afinal, há tanto julgamento e tabu quando o assunto é nudez?


No Carnaval, na praia, num provador, num set de filmagem, no médico, numa sala cheia de gente, sozinha no quarto. Cada mulher fica nua de um jeito. Tpm ouviu personagens para as quais ficar pelada é trabalho, ativismo, arte ou até moeda de troca. Por que, afinal, há tanto julgamento e tabu quando o assunto é nudez?

 

“Oi, tudo bem? Estamos preparando uma edição especial sobre nudez e gostaríamos de ouvir você sobre isso.”

Foram muitas as mulheres procuradas por Tpm para discutir o tema escolhido para este fevereiro – não por acaso, o mês do Carnaval e do clima de “liberou geral” que invade o país. A ideia, desde sempre, era discutir mesmo: tentar entender por que em geral nós, brasileiras, não nos sentimos à vontade nem nos momentos em que estar pelada é a coisa mais normal do mundo (como estar num vestiário de academia ou num provador de roupas coletivo, comuns em algumas lojas e bazares); questionar por que uma moça mais desencanada pode ir parar na delegacia se resolver fazer um topless em Ipanema (ou em qualquer outra faixa de areia em território nacional); refletir sobre a força que ainda tem, nos dias de hoje, o corpo nu de uma mulher em uma obra de arte ou em um protesto na rua; ouvir as motivações que levam uma famosa a posar nua em uma revista masculina – e, claro, as razões das que escolhem o contrário, não aparecer pelada de jeito nenhum.

Foi nesse último tópico que a coisa pegou. Nossa reportagem levou não da maioria das atrizes convidadas a simplesmente falar do tema. “Não quero associar minha imagem a esse assunto” foi resposta frequente. Ficar nua, para uma celebridade, é de fato uma cartada significativa na condução da carreira. É compreensível que a decisão seja cercada de cuidados. Mas a recusa em fazer qualquer pronunciamento a respeito também não deixa de ser intrigante. Por que é melhor evitar? E o que representa, afinal, estampar uma revista ou a tela de cinema com o próprio corpo totalmente nu?

Luana Piovani, quatro vezes capa da revista Trip (com ensaios sensuais produzidos aos 20, 25, 30 e 35 anos de idade), topou não só falar, mas também se despir na sessão de fotos para a reportagem e para a capa desta edição. Discorreu inclusive sobre o tópico que talvez seja o mais delicado da questão: o preço da nudez. Embora prefira não falar em números, a atriz, que hoje está na novela Guerra dos Sexos, na Globo, e é apresentadora do programa Superbonita, do canal GNT, é franca ao afirmar que o que a faria finalmente liberar o que nem a Trip mostrou – sua genitália – é uma alta quantia de dinheiro. “Tem que ser muito dinheiro”, resume. “Porque eu vivo muito bem sem isso, então seria para mudar a vida”, diz. Nos quatro ensaios, Luana mostrou os seios. Também já fez fotos de lingerie para outras publicações masculinas. Mas traça uma linha muito clara quando o assunto é o nu completo.

 

“Na hora que fizer nu frontal, eu dei tudo."

 

“Na hora que fizer frontal, eu dei tudo. Acho que só abriria por um excelente motivo.” Por excelente, ela entende uma mansão no Jardim Pernambuco, o condomínio no coração do Leblon, no Rio de Janeiro, onde as casas não valem menos de R$ 12 milhões, ou um papel em um filme que fosse menos comercial do que os trabalhos que fez até hoje: um exemplo que ela cita é Amarelo manga, longa de Claudio Assis que ganhou mais de 20 prêmios em festivais de cinema (leia a entrevista com a atriz aqui).

A nudez de Luana Piovani tem, portanto, um preço. A de muitas outras atrizes também. Christiane Torloni, que foi capa da Playboy três vezes nos anos 80, declarou que, hoje, nenhum veículo tem dinheiro para pagar o que ela cobraria. Assim como ela, Nívea Stelmann não aceitou o cachê oferecido pela revista e, na época, resumiu a questão de maneira bem-humorada ao site iG: “O empresário ganha, o imposto de renda ganha, mas quem fica no borracheiro sou eu. Então, quem tem que ganhar dinheiro sou eu”. Do lado das que aceitaram posar nuas, Nathália Rodrigues e Juliana Alves garantem que o cachê pesou na decisão. Nathália declarou ter alcançado estabilidade financeira com o pagamento e Juliana conseguiu comprar um apartamento à vista.

Onde essas mulheres veem um preço a cobrar, a filósofa Marcia Tiburi, 42 anos, vê um preço a pagar. “Quando você se vende como um pedaço de carne, você é uma pateta. As mulheres que posam para a Playboy, todas lindas e gostosas, são umas otárias do ponto de vista político. Elas não fazem ideia da relação que isso tem com o fato de a mulher ser rebaixada, ganhar menos que o homem no trabalho”, dispara. Para a escritora, o nu com apelo sexual é a própria linguagem do machismo. “Quem faz isso não tem noção que somos reduzidas ao corpo.”

 

“Quando você se vende como um pedaço de carne, você é uma pateta"

 

Por reduzida ao corpo, Marcia entende o mesmo que Simone de Beauvoir, a feminista mais celebrada da história. “Somos marcadas pelo sexo. Simone diz: ‘Antes de você ser qualquer coisa, você é uma mulher. Uma mulher médica, uma mulher jornalista. Enquanto um cara é um médico e só’.” Por causa disso, assim como o sexo da mulher grita mais alto que qualquer informação sobre ela, sua nudez também se sobressai em qualquer contexto. Por isso, um homem tirar a camisa é aceitável e uma mulher, ao fazer o mesmo, causa escândalo.

O buraco é ainda mais embaixo quando a nudez vem associada ao sexo. “Se você se deixa fotografar pelo namorado, você faz aquilo pelo seu prazer. Quando as fotos vazam, você vira culpada. E é um problema a mulher aparecer como alguém que tem prazer”, afirma Marcia. Para a nudez do homem, lembra ela, há outro peso e outra medida. Para a da atriz que negociou e cobrou pelas fotos, também. A filósofa vê moralismo nessas diferenças. “A sociedade condena a nudez da menina que foi livre, por vontade própria, mas aceita a do outdoor. O mesmo cara que está batendo punheta com a revista é o que está condenando a menina”, reclama.

No tempo das avós

Conhece a moral e os bons costumes melhor do que ninguém quem trabalha há 52 anos tirando a roupa. A pernambucana Vera França, 71, se mudou para São Paulo aos 20 para ser modelo-vivo em escolas de arte. Apaixonada pela nudez desde criança, quando andava nua sobre os cavalos do sítio onde cresceu, não entendia por que a mãe a cobria de roupas. Descobriu sua profissão quando um estudante de belas-artes a convidou para posar em frente a uma turma. “Ele me explicou como seria e eu já logo associei a ideia do belo, do belas-artes, ao nu. Porque o nu é muito belo, né? Aí, topei.” Vera nunca mais parou de posar, nem mesmo grávida. Com o trabalho, criou as duas filhas, hoje com 50 e 31 anos.

A modelo tem uma naturalidade incomum com o corpo. “Está todo mundo pelado debaixo da roupa, não está? Por que não pode expor isso?”, questiona. Enquanto está lá parada, sente que encarna um papel na formação de novos artistas. “Eu me considero uma musa, um objeto importante. Tão confortável que nem me sinto pelada.”

 

“Minha nudez mostrava a violência contra uma mulher. Hoje, 75% das que apanham não denunciam. O Brasil ainda é conservador” (Norma Bengell, atriz)

 

Vera não conhece o desconforto que a maioria das mulheres sente ao tirar a roupa no vestiário da academia, por exemplo, ou o esforço descomunal que fazemos para manter o biquíni no lugar quando entramos no mar. Para a psicanalista Anna Veronica Mautner, esse tipo de vergonha é também um pouco de vaidade. “Pudor significa querer mostrar o melhor de si. O despir é uma coisa que gostaríamos que fosse perfeito. Você não quer mostrar uma cicatriz, uma mancha. E ficar nu na frente dos outros é quase sinônimo de mostrar tudo. Você pensa que seus defeitos são vistos – não só os do corpo, como os de alma, os seus sentimentos. Por isso passa pelo acanhamento total”, explica. Por ter resolvido essa questão há cinco décadas, Vera segue posando com prazer aos 71 anos, para espanto das colegas do curso de crochê. “Se eu vou ser sem vergonha, vou ser em qualquer idade. Eu engordei, envelheci. Até falo: ‘Pode desenhar a banha’.”

Vera chegou a ter problemas no início da carreira. “As mulheres não me cumprimentavam por vergonha do que eu fazia ou por ciúme dos namorados, que me desenhavam”, lembra. “A gente não podia conversar com os estudantes.” A distância só servia para alimentar a confusão entre sexo e nudez que alguns artistas faziam. “Uma vez estava posando na casa do artista e ele veio me agarrar. Rodei a baiana, disse: ‘Eu não quero nada com você. Estou trabalhando. Você vai me forçar? Vou contar tudo para a sua mulher neste instante’. Quantas ameaças já fiz... ”, conta, relembrando 1962.

No mesmo ano, a atriz Norma Bengell chegou a sofrer ameaças por protagonizar o primeiro nu frontal do cinema brasileiro, em Os cafajestes, de Ruy Guerra. “A tradicional família mineira queria me matar”, lembra ela. O filme chocou a organização católica Tradição, Família e Propriedade, que mobilizou uma passeata contra a atriz em Belo Horizonte. No Rio, o filme foi retirado de cartaz por ordem do governador Carlos Lacerda, que cedeu aos apelos da arquidiocese do estado.

Família e sociedade

Norma tinha 27 anos quando filmou o longa, que traz a história de dois playboys que tramam um golpe. Na cena polêmica, eles a perseguem e a fotografam quando ela sai do mar. Os dois cafajestes do título também violentam outra mulher e tramam usar a nudez das duas como chantagem. Por causa do papel, a atriz enfrentou a resistência da família. “Meu pai só voltou a falar comigo dois anos depois.” O namorado da época, mais velho e ciumento, também não gostou. Mas Norma se manteve firme. “Eu jamais me arrependeria de ter feito algo tão bonito. O Ruy Guerra disse que iríamos fazer e, se eu não gostasse, ele cortaria. Eu vi aquilo e achei lindo.”

Até hoje, a atriz crê no poder dessas imagens. “Minha nudez mostrava a violência de um homem contra uma mulher. Outro dia vi na TV que 75% das mulheres que apanham do marido não denunciam. Então não há liberdade, né? O Brasil ainda é conservador.”

Conservador a ponto de proibir algo que, em praias europeias, é banal: o topless. Mostrar os seios em público é crime previsto no artigo 233 do Código Penal de maneira inalterada desde 1940. É “praticar ato obsceno em lugar público”. Na prática, distinguiur o aceitável do inaceitável fica a cargo do policial ou da pessoa que denuncia. “A lei não define o que é obsceno, apenas diz que o ato obsceno deve ser punido”, explica o advogado Gustavo Romano, criador do projeto Para Entender Direito, que explica o “juridiquês” para leigos.

Lei confusa, cidadãos idem. “Por que o homem pode andar sem camisa, mas a mulher não? E por que uma mãe amamentar o filho é ato de beleza, mas a moça mostrar os seios é ato obsceno? Talvez não seja pela repulsa moral, mas o contrário: por desejarmos e não alcançarmos. Homens ainda fazem e aplicam as leis: se não podemos ter, que elas não possam mostrar o que nos negam.”

Mamilos e sandálias

Nesse embate, nudez e sexo voltam a conversar. Para a ativista russa Gypsy Taub, 43 anos, a repressão sexual é a grande inimiga da nudez desencanada. “A excitação em torno da nudez é uma resposta do corpo ao que ele é sistematicamente privado de ver. É como mostrar comida a um faminto”, diz Gypsy, uma ex-stripper mãe de três filhos que milita pelos direitos individuais, inclusive o de andar nu pelas cidades.

Ela e outros moradores de San Francisco, na Califórnia, estão indignados desde dezembro, quando o município aboliu o direito de andar sem roupa nas ruas. Eles lutam na Justiça para que a lei, prevista para entrar em vigor neste mês, seja anulada. Estão prontos para levar a briga até a Suprema Corte do país. Para Gypsy, trata-se de uma questão de princípios. Ela prefere ficar nua na praia ou em festivais de música e arte como o Burning Man, “onde as pessoas têm mente aberta”. Na cidade, munida de megafone e calçando sandálias com meias, Gypsy se despe em nome da liberdade nas questões do corpo. “Você me pergunta por que andar pelado na rua. Eu respondo: por que não?”

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