por Milly Lacombe
Tpm #128

Há no mundo alguém que não conheça intimamente a escuridão? Que não sofra?

 Há no mundo alguém que não conheça intimamente a escuridão? Que não sofra? Que não pense em desistir?

Eu tinha 8 anos quando vi minha mãe chorar pela primeira vez. Estávamos dentro do carro, paradas no trânsito da cidade, que em 1975 já era aterrorizante, quando a vi em lágrimas. Fazíamos o caminho de volta para casa no fim do dia, e nada me parecia diferente de todas as outras tardes a não ser por aquele pranto que não pude antecipar. Sentada no banco de trás do Opala azul que meu pai havia comprado sob protesto materno, que não conseguia lidar com aquela cor em um carro, ousei enfiar meu rostinho sobre o assento da frente, que era um assento contínuo porque assim o automóvel podia acomodar decentemente as seis pessoas da família – três na frente, três atrás, mais Antônia, a babá –, para me certificar de que era mesmo choro o que eu ouvia. “Por que você está chorando, mãe?”, lembro de ter conseguido perguntar duas ou três vezes antes de me conformar com o “não é nada” que ela insistia em responder enquanto engatava as marchas.

Ali mesmo eu talvez tenha intuído que alguma coisa em mim estava para sempre transformada. De cara, entendi que adultos, mesmo os adultos mais fortes, engraçados e poderosos do mundo como minha mãe, também choravam, e que choravam por coisas que não envolviam ter que ir para a cama cedo, ter que acabar com a comida do prato, ter que devolver o brinquedo à irmã, ter que tomar banho todos os dias, não poder comer biscoito antes do jantar – entendimento que me apavorou. Quando chegamos em casa, estranhamente nada escapou à rotina: jantamos, vimos TV, escovamos os dentes, fomos deitar e nunca mais tocamos no assunto daquele choro. Na cama, antes de pegar no sono, uma coisa não me saía da cabeça: minha mãe estava triste, e isso não podia ser bom.

Hoje tenho certeza que o pranto de minha mãe não deveria ter tomado o caminho de uma gaveta escondida no fundo do armário. À criança que eu fui, e que ainda sou, teria sido apenas útil ter contato com aquela tristeza, que cedo ou tarde também me alcançaria. Por que, afinal, devemos evitar a melancolia, não ousar citar seu nome e, ao vê-la chegando, romper para a farmácia mais próxima? O que há de errado em ficar retumbantemente, irremediavelmente e inescapavelmente triste? Há no mundo alguém que não conheça intimamente a escuridão? Que não sofra? Que não pense em desistir? Que não tenha perdido um grande amor? Que não coloque as mãos no rosto e chore sozinha dentro de seu quarto? Que não se desespere com a noção de que estamos sós? Não são essas as fotos que chegam ao Instagram e ao Facebook, eu sei, mas são esses os verdadeiros retratos da vida. E eu, que agora posso dizer que tenho alguma intimidade com a Tristeza, essa dama, devo admitir que, vista muito de perto, trata-se de uma rapariga fascinante.

Antes de mais nada, porque só quando ousamos despi-la de forma lenta e afetuosa, como despimos a mulher amada, é que percebemos seu grande e sedutor paradoxo: ao desistirmos de duelar com ela, ao aceitarmos beijar sua face, finalmente nos colocamos em condições de vencê-la. E é precisamente nessa hora que, no meio da escuridão, é possível ver uma fresta de luz que nos convida a escapar. Lá fora, onde tudo parece colorido, encontramos o Corinthians campeão do mundo, amigos jantando em nossa mesa, sobrinhos desenhando no chão da sala, seu objeto de desejo repetindo que ama você enquanto coça suas costas. Lá fora, onde nunca chove, somos capazes de nos reconectar com a percepção de que fazemos parte de uma mesma coisa, unidos pelo sofrimento e pelo desejo de encontrar as frestas.

Dor sem fim

Que valor haveria nisso se não tivéssemos nos permitido visitar a escuridão, onde tudo é saudade e culpa e arrependimento e injustiça? A tristeza é o telescópio da verdade, disse Lord Byron; e a verdade mora nas frestas de uma quartafeira chuvosa qualquer, no exato instante em que você volta para casa e, munida de uma taça de vinho tinto, senta perto da janela com um livro nas mãos, sabendo que, cedo ou tarde, a Tristeza, essa dama, voltará e bater na porta para convidar você a dançar. Ao aceitar, você estará automaticamente aceitando se transformar porque a verdade é que não há outro modo de se tornar uma pessoa melhor, mais humilde, mais atenta, menos vaidosa e menos orgulhosa senão dar as mãos à tristeza e sair rodopiando com ela pela sala. A alternativa – negá-la – fará de você uma pessoa menos sensível, menos atenta, mais ligada à enxurrada de futilidade que flerta com cada um de nós todos os dias.

Vivemos num oceano de imensas dores, basta olhar em volta. E, se formos capazes de transcender nossas miseráveis vidas, é inescapável deixar de chorar pelas crianças que agora mesmo estão morrendo de fome em algum lugar do planeta, pelas mães que neste exato instante enterram seus filhos assassinados em guerras que ainda devastam a Terra, pelos animais que, enquanto você lê esta palavra, estão sendo exterminados em nome do prazer de alguma mente tacanhamente humana. E, mesmo que a alegria suprema fosse amplamente alcalçável, seria possível ser completamente feliz enquanto existisse um ser vivo sofrendo na Terra?

O nascimento de um homem é o nascimento de sua dor, escreveu o mestre tibetano Chuang-Tsu, tocando a verdade de forma arrebatadora. E, se há mesmo um criador de tudo isso, ele talvez esteja esperando que matemos a última grande charada: a de que, ao espantarmos os demônios, estamos mandando embora com eles também os anjos. A de que, ao escaparmos da dor a todo custo, estamos aceitando deixar de reconhecer a felicidade em suas infinitas tonalidades e possibilidades. Aí fica fácil perceber que Deus e o diabo não são inimigos, mas complementos. E que o contrário do amor não é o ódio, mas o medo – especialmente aquele medo que nos é apresentado em trajes de gala: o medo de sentir.

Voltando para casa depois de mais um dia de corre alucinado pela cidade, parada no trânsito como minha mãe há 37 anos, lembrei do dia que a vi chorar, do dia em que intuí que seria mais adequado não falar a respeito da inescapável tristeza que é viver um dia após o outro. E eu, que recentemente fiz as pazes com toda a escuridão que me cerca, gostaria de ter, naquele dia, podido dizer a minha mãe que esse era mesmo o ritmo das coisas nesse planeta maluco em que nascemos, e que, no final, tudo ia ficar bem.

 

A carioca Milly Lacombe, 45 anos, já exercitou sua paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu apartamento em São Paulo, onde mora com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com

fechar