por Bruna Bopp
Tpm #126

Em que medida o poder feminino é diferente? Como mulheres em posição de comando encaram o poder

As mulheres ocupam cada vez mais cargos de liderança e chefiam mais lares no Brasil. Mas em que medida o poder feminino é diferente? Tpm investiga como especialistas e mulheres em posições de comando encaram a questão

Os dados deste ano da rede internacional Social Watch decretam: o Brasil é o último colocado entre os países do Mercosul quando o assunto é equidade de gêneros na política. Aqui, mulheres, mesmo em altos cargos executivos, continuam ganhando em média 25% menos que homens. Ao mesmo tempo, elas são maioria nas universidades brasileiras (ocupando quase 60% das vagas), chefiam 37% das famílias (de acordo com pesquisa divulgada recentemente pelo IBGE), têm maior presença na política (um aumento de 7,4% em 1992 para 13,3% em 2012) e hoje estão nos mais altos cargos do poder executivo federal – precisamente, a presidência da república mais dez ministérios, uma participação inédita. Mas há dúvidas pelo caminho. Se um número maior de mulheres em postos de comando representa avanço, por que ainda é preciso emular comportamentos masculinos para ocupá-los? Existiria um “jeito feminino” de exercer poder? O que pensam (e querem) as mulheres que “chegaram lá”?

Para responder essas perguntas, Tpm ouviu especialistas, além de quatro mulheres de diferentes idades, origens e trajetórias profissionais, todas bem-sucedidas: a jornalista Glória Maria (que não revela a idade), a empreendedora Isabel Pesce Mattos, 24 anos, a produtora cultural Flora Gil, 52, e a professora e vereadora Amanda Gurgel, 31. Um traço comum às quatro é nunca ter perseguido o poder em si: nenhuma almejou chegar a determinado cargo ou traçou uma estratégia para subir na carreira. O que fizeram foi brigar por espaço no que gostavam de fazer – o que, em mais ou menos tempo, as levou às posições de destaque de que desfrutam hoje.

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Malabarismos

“A definição de poder varia de indivíduo para indivíduo e é construída histórica e socialmente. No século 19, ter poder era possuir dote para atrair um marido, ser casada na igreja, ter uma dezena de filhos”, explica a historiadora Mary del Priore. “Hoje queremos ser poderosas no espaço público, dirigir empresas, ganhar dinheiro, ter carreira profissional ou política.” Para a historiadora, a bandeira da igualdade revelou-se inoperante. “Os sexos são radicalmente diversos e o positivo é apostar nas diferenças inatas. Mulheres são hábeis negociadoras, diplomatas, mediadoras, flexíveis. A mulher que se queria, um homem de saias, não deu certo.”

Muitos estudiosos não acreditam nas tais diferenças inatas entre homens e mulheres. Clara Araújo, doutora em sociologia e coordenadora do Nuderg, o Núcleo de Estudos sobre Desigualdades Contemporâneas e Relações de Gênero, da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), está nesse grupo. “Há determinadas características que são encontradas mais nas mulheres do que nos homens, são traços construídos culturalmente, não individualmente”, opina. “Como está sob elas a responsabilidade do cuidado doméstico, e os homens têm a experiência de se verem como provedores, essas características se fortalecem.” Clara ainda acredita que a expectativa para que as mulheres atuem de maneira diferente dos homens pode ser prejudicial. “Espera-se que elas ajam de tal jeito (supostamente feminino) e, se não agirem, estão agindo como homens. Determinados espaços pedem determinadas formas de agir, independentemente de ser homem ou mulher”, defende.

A antropóloga Debora Diniz, pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, completa: “Tanto a mulher que exerce sua feminilidade quanto a que a suprime têm espaço em cargos de comando. A questão primordial é a consequência disso no uso do tempo pessoal dessas mulheres. Homens têm tempo para o lazer, e a mulher ainda tem que gastar seu tempo livre em tarefas domésticas”. Ela acredita que vivemos um momento de transição. “O poder é masculino em sua natureza, toda sua expressão de funcionamento, desde como os cargos foram concebidos a como são executados, tem a ver com as funções sociais que antes eram atribuídas somente aos homens”, afirma. “Por isso, quando uma mulher chega a um cargo de destaque, ainda causa espanto.”

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“Odeio zona de conforto”

Glória Maria, uma das pioneiras a chegar ao comando de um programa jornalístico na Rede Globo, hoje está mais próxima da mulher que não admite abrir mão da família pelo trabalho. Nascida no Rio de Janeiro, ela foi a primeira repórter negra da TV Globo. Tem 35 anos de jornalismo e apresentou o Fantástico por uma década, antes de tirar dois anos sabáticos para se dedicar a trabalhos voluntários. Foi à Índia, à Nigéria. E na Bahia conheceu as irmãs Laura, 4, e Maria, 3, que decidiu adotar.

“Renunciei a muita coisa na vida por trabalho, mas hoje renuncio a ele pelas minhas filhas” Glória Maria, jornalista

Até virar mãe, Glória diz que seu nome era trabalho. “Fui dona de mim mesma. Enquanto quis trabalhar, trabalhei sem parar. Até chegar a hora de parar. Saí pensando em viver.” O poder que Glória já tinha (financeiro, inclusive) ajudou na decisão, que ela relaciona a uma necessidade de renovação. “Talvez meu poder venha da minha inquietação. Odeio zona de conforto. É a morte para mim e eu tenho pavor de morrer.” Hoje, na posição confortável que adquiriu – agora como repórter especial do Globo repórter –, Glória relata uma relação diferente com a carreira. “Antes o trabalho preenchia meus espaços. Renunciei a muita coisa na vida por ele, mas hoje renuncio a ele pelas minhas filhas. Eu trabalho para sustentá-las.”

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A revisão da carreira trazida pela chegada dos filhos é um dos temas mais recorrentes quando se analisa a questão mulher e poder. Pela razão óbvia: a maternidade é algo que muitas mulheres também querem exercer. E que, em geral, demanda tempo e esforços que posições de chefia costumam exigir. Para a antropóloga Debora Diniz, não abrir mão da maternidade faz parte de uma conquista importante desde o surgimento da pílula anticoncepcional, nos anos 60. “A quarta geração pílula, hoje com 30 anos, já está negociando isso de um jeito diferente, até porque agora entende-se que o ato de cuidar é uma forma de realização. Antes, essa função era considerada subalterna, menor, e por isso a mulher se sentia na obrigação de abrir mão do cuidar por um poder ‘maior’. Hoje percebe-se que ambas as funções são essenciais para algumas mulheres.”

 

Glória Maria 

Jornalista há 35 anos, foi a primeira repórter negra da TV brasileira e é uma das apresentadoras mais conhecidas do país

O que é poder? Inquietação, necessidade de renovar.

Qual foi o dia em que se sentiu mais poderosa? Sempre fui querida e bem recebida pelo povo. Tinha as portas abertas.

E mais impotente? Em 1976, fui convidada a usar o elevador dos fundos do hotel Othon Palace, no Rio. Ali a discriminação racial falou mais alto [na época, racismo ainda não era crime, mas Glória processou o hotel. O gerente, estrangeiro, foi convidado a sair do país].


A menina do vale

Em julho deste ano, a revista americana The Atlantic fez barulho ao trazer na reportagem de capa o relato de uma poderosa ex-funcionária do governo que desistiu da carreira para dar atenção aos filhos adolescentes. Anne-Marie Slaughter, que foi número um na equipe de planejamento do Departamento de Estado dos EUA, detalhou sua angustiante luta por um equilíbrio que, ela conclui, não existe: “O malabarismo entre o trabalho governamental de alto nível e as necessidades de dois adolescentes não era possível”, escreveu no artigo, intitulado “Por que as mulheres ainda não podem ter tudo” (“Why women still can’t have it all”).

Isabel Pesce

Dona da Lemon, empresa startup no Vale do Silício, nos Estados Unidos, que recebeu aporte financeiro de US$ 8 milhões

O que é poder? Acesso. O poder como a gente conhecia está acabando. Você não tem poder por ser chefe. As regras de quem cresce profissionalmente estão completamente alteradas.

Qual foi o dia em que se sentiu mais poderosa? Quando descobri que é possível saber do que as pessoas gostam e fazer com que elas se descubram felizes realizando um projeto que nasceu na minha cabeça. Aos 19 anos, mesmo sendo estagiária na Microsoft, as pessoas me ouviam.

E mais impotente? Quando comecei a procurar parcerias para a Lemon, no início. Foi difícil driblar as burocracias e mostrar a minha ideia.


Apesar de não ter filhos, Isabel Pesce Mattos, que em poucos anos de profissão atingiu posição invejável no Vale do Silício, a região da Califórnia onde estão as mais importantes empresas pontocom do planeta, tem noção clara de que a maternidade torna diferente o jeito com que mulheres e homens encaram a carreira. “Muitas mulheres, quando têm filhos, querem tirar cinco, seis anos para cuidar deles. E isso vai existir sempre.” Aos 17 anos, Isabel se mudou de São Paulo para os EUA e foi estudar no MIT (Massachusetts Institute of Technology). Depois, estagiou no Google e na Microsoft (onde ganhou uma bolsa de estudos) e, aos 23, fundou a Lemon, empresa que acaba de receber aporte de US$ 8 milhões por conta do sucesso de um aplicativo de finanças que já teve mais de 1 milhão de downloads. Autora de A menina do vale, livro sobre empreendedorismo, ela diz jamais ter sofrido preconceito por ser mulher e se vê parte de uma geração em que, com a democratização da informação, aqueles dispostos a ralar muito podem conseguir o que quiserem. Sejam homens ou mulheres. “Quando se pensa em poder, ainda se remete a uma pessoa mandando em outras. Mas já não é assim aqui no vale. Ter poder não é ser mandachuva. É poder fazer. E criar uma cultura em que todos possam crescer e ser responsáveis por si mesmos.”

“Não vivo em meio a homens achando que são melhores. Acho isso chato, careta e antigo” Flora Gil, empresária

Diretora da Gegê Produções Artísticas, Flora Gil administra a carreira de Gilberto Gil, seu marido há 32 anos, e é responsável por toda a engrenagem do camarote Expresso 2222, negócio que movimenta milhões de reais durante o Carnaval baiano. Cada dia mais ocupada – e mais poderosa – ela acha que o jogo está cada vez mais favorável às mulheres, por tudo o que já foi trilhado. “Antigamente nosso espaço era demarcado em papéis coadjuvantes, mas hoje vemos e sentimos as mudanças. Estamos no comando de governo, empresas, hospitais, caminhamos bastante.” Flora acredita até que certas discussões relacionadas a gênero estão ultrapassadas. “Não vivo em meio a homens achando que são maiores ou melhores que as mulheres. Acho isso chato, careta e antigo.” A percepção vem do meio em que ela atua: “Na arte, na música, às vezes os homens são mais mulheres e as mulheres são mais homens. Tudo caminha com sabedoria, tranquilidade e respeito”.

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Flora Gil

Diretora da Gegê Produções, administra a carreira de Gilberto Gil e organiza o camarote Expresso 2222, que movimenta milhões de reais no Carnaval de Salvador

O que é poder? Ter mais responsabilidade que os outros.

Em que momento se sentiu mais poderosa na vida? Nunca me senti “a poderosa”. Posso ter estado perto do poder quando Gil foi ministro, durante o governo Lula. Frequentávamos a casa do presidente da república, e achava engraçado almoçar ao lado de pessoas tão importantes. Mas nunca me iludi.

E mais impotente? Quando eu e minha irmã fomos assaltadas no Rio, numa tarde ensolarada.


Boca no trombone

Menos tranquila é a seara em que se meteu a professora Amanda Gurgel, que acaba de ser eleita vereadora pelo PSTU de Natal, no Rio Grande do Norte, com expressivos 32 mil votos. Amanda, que ficou famosa por um vídeo-desabafo (bit.ly/AmandaGurgel) sobre a situação da educação no país – com mais de 2,3 milhões de visualizações no YouTube –, decidiu entrar na política com o ideal de mudar a realidade – um poder que ela sonha conseguir exercer mesmo com as dificuldades que já sabe que vai encontrar ao assumir o cargo, em janeiro de 2013.

A trajetória de Amanda foi moldada por uma grande referência: a avó. “Cresci num sistema matriarcal e quem mandava era ela, mulher de vanguarda, diferente de outras de sua época. Sempre achou o máximo esse meu jeito de questionar e lutar pelas coisas.” Sobre a condição feminina, Amanda comemora o que foi conseguido até aqui, mas também tem a sensação de que falta muito. “Ainda existe opressão e a ideia de que a mulher não é capaz. Se a questão de gênero estivesse superada, não existiria a obrigação legal de ter 30% de mulheres nas chapas dos partidos.”

Mas Amanda não precisou de cota alguma para se eleger – nem ela nem nenhuma política brasileira, já que a cota só vale para o número de candidatos de um partido. O que garantiu sua vaga no plenário foi, sim, a bandeira que a vereadora levanta – a da educação –, que é especialmente importante para as causas femininas. Quanto mais educadas, mais aptas as mulheres estarão para se defender de injustiças e violências, fazer valer seus direitos, ocupar cargos de liderança e realizar projetos de toda ordem. “Tudo passa pela educação”, ressalta Mary del Priore. “Nas áreas onde ela é mais deficiente, as mulheres continuam vítimas do machismo. Onde há maior excelência de formação e maior número de mulheres estudando, sua valorização na família, na sociedade e no mercado de trabalho é maior.”

Amanda Gurgel

Professora, ficou famosa com um vídeo-desabafo sobre a educação no Brasil, com mais de 2 milhões de acessos no YouTube, e acaba de ser eleita vereadora em Natal (RN), com 32 mil votos

O que é poder? Tem o poder institucional, político, mas existe o poder da mobilização do povo. As pessoas não têm noção de que são capazes de aprovar uma lei mesmo que os vereadores não queiram. É isso que eu represento hoje.

Qual foi o dia em que se sentiu mais poderosa? No dia das eleições. Foi o momento em que me vi consciente da abrangência que tem meu nome.

E mais impotente? Ao lidar com o analfabetismo funcional, com salas superlotadas, com questões estruturais que deixam a vida do professor restrita de lazer, repouso...


Esperança à vista

Na visão da ONU Mulher, entidade para a igualdade de gênero e empoderamento das mulheres, criada em julho de 2010 pelas Nações Unidas, é preciso acelerar o atendimento das demandas de mulheres e meninas no mundo, levando a elas oportunidades de desenvolvimento pessoal. “Ao lado da impunidade dos agressores, em casos de violência contra a mulher, a desigualdade no acesso a oportunidades, em todas as áreas, é o grande problema feminino da atualidade”, afirma Rebecca Tavares, representante no Brasil da ONU Mulher (que é dirigida internacionalmente pela ex-presidente do Chile Michelle Bachelet).

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Mais do que a presença de Dilma Rousseff no Planalto, os 44% de mulheres que compõem a força de trabalho no país são os grandes responsáveis por uma mudança substancial na questão de gênero. Para Jacqueline Pitanguy, socióloga que coordena o Cepia (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação), ter crianças vendo que a mãe trabalha é por si só um fator de transformação. “O filho que vê que é a mãe quem compra alimentos para a casa cresce com outra visão sobre a mulher. De forma sutil, isso vai proporcionar mudanças.”

O efeito Dilma

O país tem sua primeira presidenta. Faz diferença mesmo?

Ao ser eleita em 2010 com 55,8 milhões de votos, a mineira Dilma Vana Rousseff se tornava não apenas a primeira presidenta (com o “a” final, como ela prefere) da república brasileira, mas um símbolo fortíssimo no imaginário de meninas e mulheres do país:
a ideia de que agora elas podem tudo. Nunca antes na história do país o governo federal teve tantas mulheres em postos-chave – só nos ministérios, são dez. E ainda há Graça Foster à frente da Petrobras, mais importante estatal do país e uma das potências petrolíferas mundiais.

Mas as opiniões divergem quando se tenta explicar o que essa configuração rosa-shocking traz de resultado prático para as mulheres do Brasil. Para a historiadora Mary del Priore, não quer dizer tanta coisa. “Gênero nunca foi garantia de sucesso. Existe a idealização de que uma mulher possa fazer o trabalho de limpeza a que está associada no imaginário social. Mas grandes escândalos de corrupção também têm mulheres envolvidas.” Flavia Pitanguy, socióloga, acredita que o efeito pedagógico é muito significativo. “As meninas têm um modelo, podem aspirar a exercer poder. Quando perguntadas sobre o que querem ser no futuro, podem responder ‘presidenta da república’.” Rebecca Tavares, da ONU Mulher, lembra que, apesar de Dilma e suas ministras, as mulheres ainda enfrentam dificuldades para ocupar cargos de alto escalão. “O fato de termos uma presidenta não quer dizer que não existe mais desigualdade de gênero.” O único consenso é o de que falta no país um amadurecimento da cidadania: cobrar dos governantes uma gestão correta e justa. Sejam eles homens ou mulheres.

 
*colaboraram Luciana Obniski e Micheline Alves
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