Gosto, não nego

por Letícia González
Tpm #124

Por que ainda é tabu mulher dizer que gosta de sexo tanto quanto homem?

Num sábado de 2012, a produtora Andrea Fonseca, 31 anos, saiu à noite acompanhada de um cara, voltou para casa com outro e, no domingo, almoçou com um terceiro. Alguns fins de semana depois, para que pudesse dispensar sua companhia, fingiu que precisava trabalhar e, depois que o moço foi embora, se encontrou com outro. Mais recentemente, negou o convite de um rapaz porque queria ir à festa com outro e, chegando lá, deu de cara com o primeiro. Nesse dia, foi convidada, pelos dois, a dar explicações.

Explicação mesmo, só tem uma. “Eu sou assim”, diz Andrea, que há dois anos terminou um casamento de nove e acumula, desde então, dezenas de casos. São homens com quem ela sai, vê filme abraçada no sofá e faz sexo – muito sexo. “Quero matar a minha vontade e me divertir. E o convívio me dá tesão, ou seja, muita coisa começa na amizade e no dia a dia”, afirma. A vida está tão boa desse jeito que ela recusa a estabilidade de um compromisso. “Alguns caras quiseram algo mais sério, mas não rolou. Eu gosto de variedade mesmo.”

O fato de Andrea conseguir ser fiel a si mesma sem causar escândalo – sim, tem gente que fala, mas ela não liga nem traz essa turma para dentro da sua vida – é exemplo de uma abertura inédita no Brasil. “As mulheres nunca tiveram tanta liberdade sexual”, afirma a psiquiatra Carmita Abdo, coordenadora de um dos estudos mais abrangentes sobre a sexualidade brasileira. Nos últimos 50 anos (leia-se desde a criação da pílula anticoncepcional e da entrada feminina no mercado de trabalho), praticamente tudo mudou para as mulheres. A idade da primeira transa, por exemplo, despencou sete anos, em média: de 22, à época, para 15, hoje. A exclusividade começou a balançar. “A partir do ano 2000, as mulheres passaram a relatar envolvimentos com mais de um parceiro ao mesmo tempo”, diz Carmita. Hoje, segundo suas pesquisas, 48% das jovens entre 18 e 25 anos já viveram essa situação. O número faz parte do Mosaico Brasil, levantamento coordenado pela psiquiatra em 2008 com 8.200 pessoas de todo o país. A porcentagem é baixa comparada à dos homens, 70%, mas é uma novidade relevante. Mostra que, atualmente, há mais espaço para assumir esse tipo de comportamento.

No Brasil, as mulheres foram fisgadas pelos sex shops há meros 12 anos, segundo os dados da Associação Brasileira das Empresas do Mercado Erótico e Sensual (Abeme). E, se apenas dois anos depois elas eram 40% da clientela, em 2003 veio o pulo definitivo, quando esse número chegou a 65%. “Foi o ano em que o vibrador estilo rabbit, que estimula vagina e clitóris ao mesmo tempo, virou moda por aqui”, diz a presidente da entidade, Paula Aguiar. Ela atribui o sucesso ao seriado Sex & the city e ao surgimento de lojas com estética mais cuidadosa. Seguindo a trilha dos brinquedos eróticos, a TV paga passou a dar mais atenção ao público feminino em 2005. Foi nesse ano que o canal pago Sexy Hot, até então líder de conteúdo erótico no país, soube, por pesquisas, que 30% de seus assinantes eram mulheres e que elas queriam mais programas exclusivos. Depois de feitas as mudanças na grade, o número de assinantes mulheres passou para 50% em 2011.

Com tantas compras em sex shops e sessões de cine privê, quase dá para imaginar que a mulher que assume gostar de sexo virou ícone nacional nos anos 2000. Mas não foi isso o que aconteceu. Que o diga a jornalista Nádia Lapa, 32 anos, que, no início do ano passado, criou um blog para narrar suas experiências sexuais. Anônimo, o Cem Homens foi batizado assim por causa da fase que Nádia vivia na época. “Estava saindo muito. Concluí que, se continuasse naquele ritmo, iria para a cama com cem homens antes do fim do ano”, lembra. Os textos traziam o número e o relato das transas, com detalhes. Em julho de 2011, o blog teve um boom de audiência depois que o link foi replicado por pessoas influentes no Twitter. Mas, colados aos 50 mil acessos diários, vieram comentários agressivos – e ela quase desistiu do projeto e entrou em depressão. “Gente que me conhecia pessoalmente entrava no blog para dizer que eu era gorda, feia, diziam que eu ia morrer de Aids”, lembra (leia aqui o seu relato).

“Nos anos 50 se chamava de maçaneta, nos 70, de piranha e, hoje, é a periguete” Mary del Priore, historiadora

Para a historiadora Mary Del Priore, esse comportamento é o resultado de uma visão machista. “Durante séculos, nos ensinaram que havia apenas dois papéis compatíveis com a mulher: o da casa e o da rua. Chamar a liberada de puta é um resquício desse duo.” Segundo a autora do livro Histórias íntimas, sobre a evolução do sexo no Brasil, os nomes podem até ter mudado, mas o tratamento para quem transa com vários caras, não tanto. “Nos anos 50 se chamava de maçaneta, nos 70, de piranha e, hoje, é a periguete.”

Claro que ser alvo de comentários maldosos e machistas não é exclusividade de Nádia. Acontece também com quem já estampou dezenas de capas de revista. É o caso da modelo paranaense Isabeli Fontana, mãe de dois meninos e dona de uma lista farta de namorados. Homens como o modelo Álvaro Jacomossi, pai de seu filho Zion, o ator Henri Castelli, pai de Lucas, o empresário Rico Mansur, o cantor Falcão e o empresário Rohan Marley, entre os quais houve pouco intervalo. “Porque sempre falo abertamente que o sexo é essencial na minha vida, as pessoas têm a cara de pau de dizer que sou uma mãe porra-louca”, desabafa. No início do relacionamento com Rohan, Isabeli se viu pressionada a adotar o rótulo de “namoro” quando não havia completado uma semana do primeiro beijo dos dois. “Se você não está firme com ninguém, é biscate. Se está namorando, querem saber quando vai casar. É uma cobrança absurda.” Cansada de acompanhar o que se fala sobre ela na internet, decidiu se afastar do Twitter. “Entro só de vez em quando, para responder que a vida é minha e que prezo o livre-arbítrio.”

Foi bom para você?
Desde a época da faculdade, a empresária Caroline Andreis, 30 anos, sente o incômodo que sua atitude causa à sua volta. “Muitas meninas não falavam comigo porque eu havia ficado com todos os amigos delas. Algumas diziam que eu negava o meu papel de mulher, que podia esperar mais pela atitude dos caras. Mas essas meninas estão lá esperando até hoje!” Desde que se mudou de Caxias do Sul, na Serra Gaúcha, para fazer faculdade em Porto Alegre, aos 17 anos, ela era a nerd que andava com os meninos. Foram eles que lhe ensinaram que existem jeitos bons e jeitos ruins de fazer sexo oral, de ficar por cima etc. Ela, como boa nerd, perguntava muito. Quando se viu disputando um menino com uma colega, pensou pela primeira vez que poderia transar sem namorar. Aí, um mundo novo se abriu.

Carol sempre preferiu o tipo intelectual, mas hoje sente mais tesão por homens gostosos mesmo. Sabe que vai para a cama com alguns que não vão render mais do que sexo. “Não é sempre que isso acontece, mas quando rola, tudo bem.” No dia seguinte, pode ter telefonema, pode não ter. “A gente tem que saber ficar sozinha, se curtir.” Essa segurança, garante Carol, resulta em menos drama. “Estou mais preparada para a rejeição, não me desespero.”

O que ela, a produtora Andrea e a jornalista Nádia têm em comum é terem deixado de se preocupar só com o que os homens pensam. Entenderam algo simples: concentrar todos os esforços em fazê-los ligar no dia seguinte, se apaixonar, correr atrás é concentrar todos os esforços neles e ponto. Nesse sentido, apesar de todas as mudanças dos últimos 50 anos, essas meninas ainda são vanguarda.

No levantamento mais recente que fez à frente do ProSex (Projeto Sexualidade, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo), em 2008, a psiquiatra Carmita Abdo percebeu que a maioria das mulheres ainda não foca a atenção em si mesma. “A preocupação número um é satisfazer o parceiro”, diz. Ela vem inclusive antes do medo de contrair uma DST ou engravidar. Quando de fato avalia o próprio prazer, um quarto das brasileiras percebe que não está lubrificada o suficiente na hora da penetração, e muitas acabam sentindo dor durante a transa. Só uma minoria, 6%, se masturba regularmente. Essa falta de conhecimento e, principalmente, de coragem para pedir o que gosta no sexo acaba criando figuras como a do “cara que tem pegada”, quase um mito nas rodinhas de conversa femininas. “Ele é alguém que sabe o que a mulher quer sem ela ter que dizer nada. O cara com pegada é o homem idealizado de hoje. Ele não ouve, ele adivinha”, diz Carmita. É preguiça? Vergonha? Cultura?

A pesquisadora e curadora do TEDx São Paulo Amnah Asad, 30 anos, acha que é um pouco dos três, mas que nenhum desses fatores pode ser usado como justificativa. Filha de um palestino com uma brasileira, foi criada à moda tradicional árabe, com planos para que se casasse virgem por volta dos 17 anos. Foi meio por instinto que, aos 8, passou a explorar o próprio corpo em busca de satisfação. Sem abertura para conversar sobre o assunto em casa, diz que completou a formação lendo Capricho e assistindo a Confissões de adolescente.

Ainda nessa época, Amnah entendeu que sexo e liberdade se cruzavam na sua vida de forma mais literal que na das outras meninas. Ela precisou convencer o pai a negar o dote em ouro oferecido por um primo distante que queria se casar com ela – depois de vê-la uma única vez. Aos 15, trabalhava nos negócios da família como forma de provar que podia ser outra coisa além de esposa e mãe. Aos 20, perdeu a virgindade com um namorado, mas sentiu dificuldade em se soltar no início. “O fantasma do casamento ainda me rondava”, diz. A saída foi confiar no instinto. “Tenho esse lado meio bicho, de ouvir o meu corpo. É minha veia no naturalismo.” Foi essa vertente, e não o modo de vida ocidental, que serviu de base para a sua liberdade. “Achava que o mundo árabe me tolhia, mas, quando comecei a conversar sobre sexo com amigas, ouvi meninas falando em sexo anal e orgias sem nunca terem se masturbado. Achei triste.” 

"Falar é difícil para as mulheres. Elas gostam do 'cara com pegada' porque ele não pergunta, adivinha", Carmita Abdo, psiquiatra

A atriz Thalma de Freitas, 38, concorda. Ela também começou a descobrir o próprio corpo aos 8 anos e o mantém como referência desde então. “Quando me masturbo faço amor comigo mesma. Uma menina libertada tem pelo menos um vibrador para ter prazer sozinha.” Thalma demorou até achar prazer com parceiros. “Tive um tempo de ter uma porrada de amantes sem gozar e, mesmo assim, continuava dando”, conta. Superar essa dificuldade foi um exercício de tentativa e erro. Thalma comprou um vibrador, passou a ter namoros mais longos e descobriu que é ali, no envolvimento emocional, que mora o seu prazer. “Encontrei liberdade depois dos 33 anos. Só comecei a sentir prazer com penetração quando casei. Foi a primeira vez que gozei transando.”

Por causa do caminho que percorreu, Thalma defende a intimidade com o corpo e acha que as mulheres deveriam ter uma iniciação “solo”, focada em aprender a sentir prazer. “É legal estar bem consigo mesma para receber alguém dentro de você, e não transar por autoafirmação”, diz. Careta? Ela nega. “É minha opinião baseada no que vivi”, diz, entregando a única regra de sexo que vale a pena ser repetida numa revista.

Livre e poderosa

O que acontece quando você decide ser livre seguindo o Manual da Mulher Livre

por Denise Gallo**

Nossa personagem acordou, olhou para o lado e não disse oi para ninguém porque não havia alguém para quem dizer oi. A caminho do café na padaria, parou em frente à banca. Seus olhos distraídos leram na capa da revista das livres e poderosas: “Sexo como você nunca viu ou fez”. Sentiu um tremelique que começou no baixo abdome, subiu pelo peito e fez tremer seus pensamentos: “Por que não?”. Uma revista que vende mais de 300 mil exemplares todos os meses deve saber alguma coisa. Ela, com certeza, havia tempo não sabia nada sobre sexo inesquecível ou homens a seus pés, sobre autoestima elevada ou queixos caídos. Com o manual do prazer em mãos, a ideia na cabeça era uma só: seguir as regras. Por que continuar esperando enquanto o mundo inteiro continuava gozando? Estava na hora de “reinventar” sua vida sexual e é para isso que os especialistas da mídia estão aí: para democratizar o prazer obrigatório.

Sem querer colocar o carro na frente dos bois, pulou as páginas que falavam sobre as práticas sadomasoquistas em alta na estação e foi direto até a matéria-terapia da página 72, que atestava que, se ela continuasse “recusando homens só porque gostam de pagode ou erram o português”, seguiria sozinha: “Tolerância zero significa sexo zero”. Boa aluna, respondeu imediatamente ao SMS do colega do escritório, que já a havia convidado inúmeras vezes para sair. E daí que ela não entendia metade do que ele falava?

Convite aceito, achou por bem estudar a reportagem da página 160: “O sexo vai ser bom? Descubra se ele manda bem antes da primeira vez”. A matéria sugeria que ela escolhesse entre vários perfis de gatos antes de levar a mercadoria para casa. Mas como, convenhamos, não havia nenhuma fila de rapazes à porta da sua casa para ela escolher, foi logo procurando a descrição mais apropriada ao colega da firma, seu interesse imediato. Identificou-o no perfil “O extrovertido” e surpreendeu-se com o veredicto: “Chances de fazer você gozar: 8,5”. Releu ansiosamente as outras descrições tentando encaixá-lo em um perfil mais promissor, como “O certinho. Chances de fazer você gozar: 9” ou “O amigo. Chances de fazer você gozar: 10”, mas não quis forçar a barra. Satisfez-se com a perspectiva do 8,5 e seguiu adiante, anotando que, durante a transa, deveria “soltar gemidinhos de prazer para que ele saiba que você está adorando” (página 164). Afinal, no sexo, espontaneidade é tudo.

Decorou as posições “cachorrinho agitado, alongamento safado e colher de chá”, explicadas na página 115, e ensaiou mentalmente a definitiva “preguicinha boa” (isso não era nome de esmalte?), que sugeria que ela o prendesse à cama pelas pernas e cavalgasse por cima dele. Sentindo-se segura para começar a se lançar em combinações mais autorais, decidiu usar a “preguicinha boa” integrada à técnica “esconde-esconde” (página 101), que ensinava a desenhar com uma lanterna trajetos de luz pelo próprio corpo, para o amado percorrer com beijos e carícias. Decidiu levar na bolsa as páginas 129 e 130, que lhe prometiam o título de “sexpert, uma verdadeira ph.D. em sacanagem”, caso ela aprendesse a usar objetos do cotidiano, como elásticos de cabelo e espátulas de cozinha, para aumentar o prazer e deixar os homens de joelhos.

Nesse momento, porém, imaginou o colega do escritório de joelhos diante dela, o elástico de cabelo sendo utilizado como um “anel peniano” (página 130), ela iluminando seu próprio corpo com uma lanterna (página 101), ele tentando beijar o foco de luz sobre o seu umbigo (página 102). Sentiu certa melancolia. Pensou que talvez preferisse a intimidade de fazer o que tivessem vontade na hora ou, até mesmo, a intimidade de não fazer nada. Pensou, também, que não tinha nenhuma vontade de ter intimidade alguma com o colega do escritório. Decidiu cancelar o encontro e preferiu, sim, continuar esperando enquanto o mundo inteiro continuava gozando. Saiu para beber com uma amiga. Noite divertida foi aquela.

**Denise Gallo é pesquisadora, estuda as representações da mulher na mídia e jura que não inventou nenhuma das dicas acima, todas retiradas de revistas reais. E-mail: dgallo@uol.com.br

 

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