por Milly Lacombe
Tpm #120

Produtora escancara o baú: sexo livre, drogas e o casamento rock n’ roll com Raul

De volta à cena com o documentário Raul - O Início, O Fim e O Meio, a produtora Kika Seixas, ex-mulher de um dos ícones do rock brasileiro, relembra os anos em que viveram juntos e fala de amor, fama, mortalidade, aborto, fracassos e sucessos


Angela Maria de Affonso Costa nasceu no Rio de Janeiro em 1952. Filha de um militar carioca e de uma dona de casa cearense, cresceu à sombra das duas irmãs mais velhas, que, ocupadas com a adolescência, preocupavam os pais tradicionalistas. Enquanto eles tratavam de cuidar para que as duas primeiras andassem na linha, a caçula, que ganhou o apelido de Kika, aproveitou para se mandar para o Arpoador. Com 11 anos já surfava de pranchão e, logo depois, se permitia delirar com a liberdade sonhada pela juventude dos anos 60 – namorou Helinho Pellegrino, filho do famoso psicanalista, e andou grudada em André, filho do jornalista e escritor Otto Lara Resende.

Depois de entrar no curso de arquitetura da Faculdade Gama Filho, decidiu trancar a matrícula e se mudar para Paris e Ibiza a fim de experimentar um pouco mais a liberdade tão sonhada. Lá, descobriu que a vida era também sofrimento: estava no litoral espanhol em 1977 quando recebeu a notícia de que sua irmã mais velha havia se matado, aos 32 anos. Chorou sem parar por três dias e pensou que não fosse conseguir continuar a viver. Era a primeira vez que lidava com a morte, e não havia como saber que outras partidas rapidamente viriam.

No final dos anos 70, de volta ao Brasil, foi trabalhar na gravadora Warner, o epicentro da música brasileira da época, e lá conviveu com Nelson Motta, André Midani, Elis Regina, Gilberto Gil, e conheceu Raul Seixas. Com ele, entendeu o amor de verdade: durante muitos anos viveram uma paixão arrebatadora. Foi Kika quem, o quanto pode, deu uma ajeitada na vida de um dos maiores ídolos do rock brasileiro – e, até onde lhe foi permitido legalmente, cuidou de parte do legado do músico após sua morte, 23 anos atrás. “Levava Raul pelo braço para tirar RG, CPF. Quando tivemos a Vivi, fiquei com medo de ele a abandonar como tinha feito com as duas primeiras filhas. Ele tinha saído das relações de um jeito muito feio. Então, levei o Raul para os Estados Unidos para rever a segunda filha”, lembra.

Uma delícia de careta
Atualmente, trabalhando como produtora para a indústria da música, feliz ao lado da filha que teve com Raul – a DJ Vivian, 30 anos – e casada com o cantor e compositor Arnaldo Brandão (é ela quem produz os CDs do marido), ainda se permite chorar de saudade e de emoção quando lembra da época em que viveu com o antigo companheiro.

Por ocasião do lançamento de Raul – O início, o fim e o meio, documentário de Walter Carvalho a respeito da vida de Raul Seixas, Kika volta ao centro do palco. Sobre o filme, opina: “O documentário deixa a impressão de que ele era mulherengo, traidor. Ficou muito sexo, muita droga e pouco rock’n’roll. As pessoas me dizem na rua: ‘Como aguentou aquele bando de mulher?’.Não era assim. Sexualmente, Raul era careta. Uma delícia, mas careta”, ri.

Em seu apartamento na Lagoa, vestida como a garota de praia que ainda vive dentro dela – shortinho jeans bem curto e camiseta decotada – e, aos 60 anos, exibindo um corpo capaz de deixar muita mulher de 30 com inveja, Kika Seixas recebeu a reportagem da Tpm para refletir a respeito de vida, de fama, de fracassos e sucessos, de maternidade e mortalidade e, claro, de Raul.

Tpm. Pai militar e juventude hippie. Como foi isso? Kika. Sempre dei um jeito de estar no meio da música, do surf, do Arpoador e de Saquarema. Minha mãe foi na boa, meu pai era preocupado. Quando contei que não era virgem ele ficou muito assustado [risos].

Quantos anos tinha? Devia ter uns 16 anos.

Mas por que contou? Só se falava em psicanálise naquela época, que era preciso conversar, contar as coisas para os pais, mesmo que ficasse tudo estranho. E lá fui eu. E ele: “Ai, meu Deus, e quem vai te querer agora?”.

A vida mudou muito depois do suicídio de sua irmã? Meu pai mudou muito. A morte dela, tenho certeza, foi reflexo de uma certa rigidez na educação. Ele sofreu demais, foi uma coisa muito triste para todos nós. A partir dali, o amor dele triplicou por mim e minha irmã, e ele foi muito parceiro.

Havia uma rigidez grande na educação de vocês? Minha irmã foi vítima de machismo, que diz que mulher só vence socialmente se conseguir casar. E acho que ela casou para preencher esse requisito e acabou casando com o cara errado. Ela descobriu que o marido estava noivo de outra. E não aguentou essa barra, se sentia sozinha.

Como seu pai reagiu quando você começou a namorar o Raul? Ficou meio apavorado no começo, mas, ao mesmo tempo, ele estava apaixonado por “Ouro de tolo”, do Raul. Ele já era um ex-militar querendo se reformar, e via que eu estava lidando com uma pessoa muito especial.

Como foi a temporada que viveu entre Paris e Ibiza? Em 1975, meu pai foi convidado para trabalhar numa grande empresa de engenharia, depois de ter sido afastado da aeronáutica. Foram ele e mamãe para a Argélia e sugeriram que eu fosse estudar em Paris. Deixei a faculdade no Rio e fui! Em Paris, conheci o [bailarino] Lennie [Dale, 1934-1994], que estava deixando os Dzi Croquettes. A gente só viajava. Lennie conhecia toda a cidade e me levava pra cima e pra baixo passeando de Velosolex, uma bicicleta motorizada, genial. Ficamos muito amigos. Meu pai me mandava um dinheirinho e eu ia me virando.

E Ibiza? Qual era o clima da época? Esta foi a fase mais gostosa da minha vida: só prazer, beleza, curtição, sexo... Parti com Lennie para Ibiza no verão de 76. Ibiza linda: só alemães e ingleses alternativos, músicos, alguns viajavam para a Tailândia, para as ilhas de Bali e Java e traziam mercadorias para vender durante o verão, era um roteiro bem conhecido na época. Só jovens curtindo as praias de nudismo, o paraíso na terra. Morávamos em “fincas” (casas dos aldeões “ibizencos”), não havia luz, água encanada, mas nunca nos faltou nada. Acho que a gente se alimentava de luz e sexo [risos]. Lá assisti aos shows dos guitarristas Eric Clapton e Stevie Ray Vaughan.

 

"Quando contei que não era mais virgem, meu pai falou: 'Ai, meu Deus, e quem vai te querer agora?'"



Quando voltou ao Brasil? O Lennie me pegou para representá-lo ainda em Paris e percebi que poderia ser boa produtora porque funcionava como um contrapeso para a alienação do artista. Eu falava inglês e francês fluente. Em 1977, voltei já como produtora e em 79 fui para a Warner trabalhar no departamento de imprensa e de novos projetos.

Como era trabalhar na Warner numa época tão marcante para a nossa música? Era a época áurea das gravadoras internacionais, e o cast da Warner era feito com os melhores artistas do Brasil, como Gilberto Gil, Baby Consuelo, As Frenéticas, Pepeu Gomes… Enfim, a fina flor da música brasileira. Convivi até com a Elis Regina. A criatividade e o profissionalismo de tantas pessoas jovens e talentosas eram contagiantes.

Mesmo jovem, nunca sonhou em casar? Igreja, véu etc. Nunca. Minha irmã dizia que invejava minha independência.

O Raul era um cara esquisitão, e você, uma mulher muito bonita. O que ele tinha? Ah, ele tinha muita inteligência, um bom humor incrível. Eu era fã do Raul desde 1973, muito antes de casar com ele.

Por quê? Eu era amiga do Claudio Fortuna, o fotógrafo que fez a capa do [LP lançado em 1973] Krig-ha, bandolo. E, nessa época, só se falava em Gal, Bethânia, Caetano… E o Raul lançando o Krig-ha, bandolo, que não era uma coisa muito divulgada porque a cena carioca era MPB. Raul era off-off Rio, sabe? Essa capa do LP era a do anti-herói, o Raul magérrimo, cantando rock’n’roll. Aí, fui com o Claudio ao show e fiquei fascinada com as letras, um anti-herói falando aquelas coisas todas. Inteligência seduz, né? Eu tinha 21 anos.

Quando foi que ficaram juntos? Seis anos depois. Eu trabalhava na Warner, com o [André] Midani, que era o presidente, e o Raul estava lá gravando. Lembro que cheguei a ligar para a Tânia [Menna Barreto], a namorada dele na época, porque o Raul tinha sumido da gravação. Aí um dia ele me pediucarona e dei, mas só até uma parte de Copacabana porque estava um trânsito horroroso e eu odeio trânsito. Acho que isso deixou ele intrigado: “Como assim, eu, esse grande artista, e ela nem me leva até a porta?” [risos]. A partir daí ele começou a me ligar, e um dia me chamou para jantar. Rapidamente, fiquei muito apaixonada. Era um cara extremamente educado, falava baixinho...

Esse contraste com a figura pública é sedutor. Muito, as pessoas o viam no palco: agressivo, entoando aquelas palavras de ordem, e eu vi o outro, o que falava doce, o que era bem-humorado, o que fazia piada com tudo. E quando a gente se conheceu ele estava numa fase muito ruim, o [LP lançado em 1978] Mata virgem não tinha funcionado, ele tinha se desentendido com o [Marco] Mazzola, que era um dos grandes produtores musicais da Polygram, a coisa estava feia.

 "As pessoas o viam no palco entoando palavras de ordem, e eu via o [Raul] que falava doce, o que fazia piada"



Feia de grana? É. E, além de tudo, ele devia uma grana para a Receita. Raul não ligava para isso e quem cuidava das finanças dele era um motorista, um troço esquisito. Raul não tinha RG, CPF, achava tudo uma besteira. O motorista nunca declarou imposto, e Raul nunca foi verificar. A gente andava de ônibus e ele tinha vergonha. Era um ídolo. Íamos almoçar na casa dos meus pais, no Leblon, e ele se disfarçava de alguma coisa para andar de ônibus, e a gente se acabava de rir com aquilo. Na volta minha mãe dava dinheiro para o táxi [risos].

Por que quis ir com ele para São Paulo? Foi em 1980. Eu trabalhava no meio e sabia que a cena musical ia para lá. Raul estava numa fase difícil, ninguém dava a menor bola para ele: jornalistas, empresários. E a gente estava encantado com a recepção que tinha tido do público num show em São Paulo. Então, colocamos duas malas no Fiatizinho e pegamos a Dutra. Estava grávida de três meses.

O Raul gostava de se mudar? Raul era canceriano, levava a casa dentro dele. Mas o que ele gostava mesmo era de voltar, encontrar a mulher, a filha e uns poucos amigos.

Então a versão do Raul careta não é mito? De jeito nenhum. Depois dos shows ele queria ir para casa. Enquanto esteve comigo foi sempre assim. Um grude. Muito família, muito. Eu não conheço o Raul rueiro.

Como era o processo criativo dele em casa? Ele dizia que a gente era a cotovia e a coruja. Ele compunha madrugada adentro e, de manhã, corria para me mostrar. Ele era generoso com a criação, queria dividir com você, puxava sua veia artística. Fizemos umas 15 músicas juntos.

Dessas, quais as que mais gosta? “Coisas do coração”, “Geração da luz” e “DDI (discagem direta interestelar)”.

Brigavam muito? Não, mas uma vez fui dormir na vizinha e numa outra ele quebrou o violão. Essa eu lembro por quê. Falei que a sociedade alternativa nunca existiu, que era uma utopia, e ele ficou muito brabo. Eu disse que ele tinha apenas aproveitado um momento histórico para poder ser ouvido e se lançar como cantor, mas que vivenciar aquilo era outra história. Foi nossa pior discussão. Mas ele era calmo, se fosse preciso me deixava falando sozinha para não brigar. Não falava alto, detestava bate-boca.

Raul era hippie? Nem pensar! Esse negócio de amor livre, ele detestava. Por isso acho que o documentário tem um engano, que são as situações de muitas mulheres, uma coisa meio Almodóvar. Isso não era o Raul. Ele era monogâmico, careta. Uma vez peguei uma fã querendo entrar pela janela, e Raul encolhido num canto, apavorado. O documentário deu oportunidade a alguns depoimentos histéricos que deixam a impressão de que era mulherengo, traidor. Ficou muito sexo, muita droga e pouco rock’n’roll. As pessoas me dizem na rua: “Como aguentou aquele bando de mulher?”. Não era assim. Sexualmente, ele era careta. Uma delícia, mas careta [risos].

E você? Sempre fui mais transgressora do que ele. A minha geração era a do amor livre, e no começo ele ficou assustado. Uma vez, logo que a gente foi morar junto, uma amiga de Ibiza ficou em casa. Ela andava de biquíni, às vezes topless, e o Raul cruzava com ela pela casa. Aí, um dia, ele caiu de cama. Chamei um médico. O médico entrou no quarto e saiu em meia hora. E eu: “E então? O que ele tem?”. “Kika, a doença dele é que ele não está aguentando essa moça de topless pela casa.” A gente não tinha intimidade e ele não queria reclamar para não parecer careta. Depois disso, não demorou e ela foi embora para a Bahia fazer topless em paz [risos].

Por que o relacionamento acabou? Foi em 1984. Era uma paixão enorme e foi muito difícil deixar o Raul. Mas não tive opção, ele estava impossível. Ele usava a cocaína como estimulante para criar, criar e criar. Não estou justificando, Raul era de fato alcoólatra. Mas teve um período que começou a cheirar éter, a Vivi com 3 anos, aquele cheiro pela casa. Não deu mais. Quando a gente chegou em São Paulo ele passou quatro meses no [hospital Albert Einstein]. A bebida fez mais mal a ele do que qualquer outra droga. Me lembro de eu ajoelhada pedindo para ele parar. Mas a gente não pode tentar entender o toxicômano. Não tem uma linha de racionalidade, tipo: “Raul, para, você não precisa disso agora”. Não é assim.

O fato de Raul ter abusado de álcool e outras drogas mudou sua relação com as drogas? Aos 20 e poucos anos, quando experimentei drogas, havia no Brasil e no mundo um conceito artístico e intelectual, que indicava que drogas tipo ácido, mescalina, maconha e cocaína eram ferramentas de contracultura, uma forma de demonstrar insatisfação com a opressão política e social. A cocaína estava presente, mas não com a sistemática que vi em alguns artistas, não só com Raul. A gente queria mudar o mundo, mas daí para o desbunde e para o abuso foi um passo. Tive sorte de ter parado a tempo, diferente de muitos amigos.

Você e Vivi falam a respeito? Muito. Vi muita gente se acabando por causa da cocaína, vi milionário virar mendigo. E agora tem o crack, que é ainda pior. A Vivi é DJ, trabalha na noite, e ela fala que as pessoas ficam oferecendo, rola uma insistência... É essa cena noturna. A pressão vem com um recado meio “mas você tem que experimentar, deixa de ser careta”. A Vivi, por ser filha do Raul, era cobrada de uma maluquez, sabe? Tipo: “Assume o maluco beleza em você”. Ela já pensou em desistir da profissão por causa disso.

Como foi criar a Vivi sozinha depois da separação? Voltei de São Paulo de trem trazendo as minhas malas, uma televisão e a Vivi. Durante o primeiro ano, chorei todos os dias; chorava dentro do carro dirigindo, no chuveiro, vendo TV… Amava o Raul imensamente e sabia que era correspondida, mas não aguentava tanta decepção. Era ele ou eu. Meus pais foram dois santos durante a separação e na educação da Vivian. Voltei a morar com eles no Leblon, na casa onde fui criada. Papai pagava a mensalidade dela num colégio americano; a pensão do Raul não era suficiente. Meus pais cuidaram da minha filha e me abriram a possibilidade de trabalhar nos Estados Unidos com [os músicos] Flora Purim e Airto Moreira; depois vim buscá-la e ela se mudou comigo por um tempo para lá.

 

“Quando tive a Vivi fiquei com medo de ele abandoná-la, como tinha feito com as primeiras [filhas]”



Você foi a mulher que organizou a vida do Raul? Ah, eu o levava pelo braço para tirar RG, CPF… E quando tive a Vivi fiquei com medo de ele abandonar a filha, como tinha feito com as duas primeiras [Raul teve uma filha com Edith, a primeira mulher, e outra com Glória, a segunda. Quando os relacionamentos acabaram, as duas ex-mulheres foram morar nos Estados Unidos e nunca voltaram]. Ele tinha saído das duas relações de um jeito muito feio, abandonou aquelas meninas. Ele não podia ter feito isso. A primeira mulher ficou com tanta raiva que não quis nem dar depoimento para o documentário, ela afastou completamente a filha dele. E fiquei com medo de ele ter estabelecido um padrão de comportamento. Então levei o Raul para os Estados Unidos para rever a segunda filha. Ele vivia com culpa porque não era um cafajeste, se fosse, não teria a culpa que tinha.

No documentário, você fala com coragem a respeito dos abortos que já havia feito e que
não teria problema em fazer outro. Oque convenceu você a ter um filho do Raul? Raul. Para ele, a coisa mais natural do mundo era ter um filho comigo. Quando contei que estava grávida, em nenhum momento titubeou, nem por meio segundo me deixou insegura. Para ele era óbvio que tivéssemos um filho, jamais levou em consideração a possibilidade de um aborto.

Acha que o aborto no Brasil deveria ser descriminalizado? O planejamento familiar tem que ser prioridade nos projetos sociais, e o aborto, descriminalizado. A população mundial saltou de 3 bilhões para 7 bilhões nos últimos 50 anos. Em 30 anos, viveremos a escassez extrema de água e alimentos. É esse o mundo que vão herdar as crianças que nascem hoje, indesejadas ou não. Não há volta.

Mesmo depois da morte, você manteve certa ligação com a imagem dele. A mãe do Raul, dona Maria Eugenia, me mandou o baú com as coisas dele porque eu era a única ex-mulher vivendo no Brasil, era do meio artístico, e ela achou que eu poderia fazer alguma coisa com o material de manuscritos, fotos e fitas gravadas. Foi o que fiz em centenas de lançamentos, homenagens e projetos; todos os eventos Baú do Raul foram sucesso de público e vendas. Achei importante continuar a mostrar para as novas gerações quem foi esse cara tão genial. Promovi como pude, até onde me deixaram fazer, legalmente falando. Tem garoto de 12 anos, que me chama de “tia Kika”, que é apaixonado pelo Raul. É hora de fixar a imagem dele, e esse documentário é um desejo realizado.

Continuaram amigos depois da separação? Quem ama de verdade ama para sempre. A Vivi tinha 5 anos quando a gente se separou e 8 quando ele morreu, mas continuamos a ter uma relação. Até hoje falo com o irmão de Raul, o Plínio. Ele me lembra muito o Raul, aquele jeitinho manso de falar.

Você se arrepende de ter deixado o Raul? Não. Tracei meu destino da forma que achei que deveria. Vivi um grande amor com Raul e tive a filha mais amada do mundo, minha melhor amiga hoje. Se não tivesse deixado Raul, não estaria vivendo com Arnaldo Brandão, que é o amor da minha vida. Amo e sou amada todos os dias desde que ficamos juntos, em 1999. Arnaldo é o homem mais inteligente, divertido, talentoso e alto-astral que conheço. É meu anjo da guarda.

O que a Vivi tem do pai? São os olhos dele, iguaizinhos. O resto sou eu. Raul era muito manso [risos]. Ah, mas tem um chororô que é dele. Raul era muito chorão.

Raul morreu sem muita coisa? Raul não dava a menor bola para grana. Depois que ele morreu, fui mentora de dois processos importantes dentro da indústria fonográfica a fim de recuperar os direitos. Hoje, cada filha tem um representante, um advogado. Mas fiz isso porque tinha uma filha dele, me interessava organizar as coisas mesmo que se no final todas se beneficiassem. Descobri contratos dele defasados em 12 anos. Então, tive que aprender a ver contratos. Uma das indenizações foi de R$ 850 mil. Isso há 15 anos.

Acha que Raul era apaixonado por você quando morreu? Não sei. Mas tenho uma carta que ele me mandou meses antes de morrer, quando eu estava com a Vivi nos Estados Unidos [Kika pega a carta e começa a ler em voz alta, mas tem que parar para chorar em passagens como: “Hoje, mais do que nunca, lhe desejo”; “desejava estar com você e nossa filha”; “sinto sua falta, sua companhia, seus carinhos”; “vamos envelhecer juntos?”; “cansei daquela vida miserável de drogas e álcool”; “eu te amo muito”; “perdoe as loucuras que fiz”].

Como reagiu? Você passa a não acreditar mais no alcoólatra. Ele era um doce, mas quando bebia ficava irônico, virava outra pessoa. Raul tinha isso nele, quando ia fazer análise voltava dizendo que o analista era um burro. Ele era muito inteligente e por isso muito crítico.

Era competitivo? Com algumas pessoas. Ficava difícil quando ele encanava que competia com o Caetano, que também era baiano. E Raul era fã do Caetano, mas, quando ele conseguiu ser uma estrela também, veio um pouco a arrogância do artista: era isso com Caetano, com Paulo Coelho…

Ele e Paulo Coelho não eram amigos? Raul tinha muito reconhecimento por Paulo por uma fase criativa, mas eram muito competitivos, chegava a ser desagradável. O amigo do Raul foi o Claudio Roberto, parceiro de “Maluco beleza”.

E o Caetano? Ai, como ele implicava com Caetano [risos]. E o Caetano sempre foi um doce de coco, até quando Raul estava mal de grana. Na fase em que ninguém o chamava para gravar, liguei para a Dedé, a mulher do Caetano na época, e disse: “Dedé, pede para o Caetano vir dar uma força, o Raul não está legal”. Ele foi. A gente morava num apartamento minúsculo no Leblon e o Caetano entrou, sentou no sofazinho, Raul de um lado, Caetano do outro, e aquela cena muda. Eu tentando oferecer café, Caetano tentando um papo, e não aconteceu nada. Foi constrangedor. Mas o Caetano com aquela elegância de sempre.

Por que ele mergulhou nessa crise? Quando Raul foi para a Warner, já separado das duas primeiras mulheres, pegou um adiantamento grande e não soube administrar. Estava sem mulher, começando a ficar doente, sem conseguir dar continuidade ao trabalho. E, naquela época, artista tinha que gravar um LP por ano. Como ser genial assim? Hoje a Marisa Monte grava quando quer, de quatro em quatro anos. O artista precisa parar para se reciclar. Mas o Raul não podia parar.

O que deu fim à fase ruim? O Augusto Cesar Vanucci [1934-1992], que era um homem importante na Globo, foi o responsável. Ele foi o cara que colocou o Raul no [musical infantil] Plunct Plact Zuuum, que a Globo fez em 1983. Fui até ele pedir uma força e ele disse: “Kika, vocês estão precisando de dinheiro? Posso organizar um show em benefício do Raul”. Eu disse: “Não é isso. Raul precisa trabalhar”. Dois dias depois o [produtor musical] Guto Graça Mello ligou convidando Raul para fazer a música e um dos personagens do programa. Raul fez a música em um só fôlego. Vivi era pequena, então essa coisa de criança estava viva em casa.

Como era o dia a dia? A gente tinha empregada, vida familiar, jantar na mesa. Às vezes ele ia à feira comigo, gostava do povão vir falar com ele. E gostava de tomar leite porque achava que o leite desintoxicava. Pegava um dia e tomava 3 litros de uma vez. No dia seguinte não tomava nada. Um exagero.

Você vai fazer 60 anos com corpinho de 30. Tem receio de perder a capacidade de fazer pleno uso do corpo? Obrigada, isso foi o surf na praia do Arpoador [risos]. O mais triste no envelhecimento é a limitação física. Não entendo por que Deus criou as criaturas desta forma… Espero morrer antes de ter que passar pelas limitações que a idade impõe.

Tem medo de morrer? Tenho medo de viver muito. O Arnaldo [Brandão, seu marido] diz que vai aos 100 e eu digo: “Vou ter que te arranjar uma outra mulher” [risos]. Acho a velhice triste, não sei se por causa do meu pai, que teve três derrames e morreu muito feio e triste. E agora minha mãe com Alzheimer… é um cadáver, já não reconhece mais nada. Para quê? Por quê? Em nome do quê? Da medicina? Mas e a pessoa? Não sei se tô aqui toda metida porque estou forte e cheia de saúde, mas ir como Raul [Raul morreu dormindo, sozinho, em seu apartamento paulistano], na cama, vestidinho de pijama, que bom isso. Uma saída digna é muito importante.

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