De como passei a acreditar em anjos

por Milly Lacombe
Tpm #116

Milly Lacombe fala sobre o dia mais difícil de sua vida

Já devia estar quase amanhecendo quando ela se levantou para ir ao banheiro. Era a primeira vez que dormíamos juntas e, como correm as primeiras noites sinceras, tínhamos passado horas entre papos, carícias e beijos, até que ela disse “já volto” e saiu da cama. Do banheiro, falou que queria me fazer uma pergunta. Como estávamos nos tateando, o momento era o da primeira entrevista: antigos amores, família, paixões, manias. Então, estava preparada para retomar um desses temas quando a ouvi gritar: “Você molha a escova de dentes antes de colocá-la na boca?”. Nunca tinha parado para pensar se molhava ou não, mas, buscando pela memória do ato, depois de alguns segundos disse que sim. “Não precisa molhar, sabia?”, continuava ainda do banheiro enquanto puxava a descarga. “A saliva é mais que suficiente para umedecer a pasta.” Entendi imediatamente que estava diante de uma pessoa que passava longe do ordinário.

Não demorou para que me mudasse para a casa dela e para que celebrássemos nosso casamento dançando Nina Simone no meio da sala. Também não demorou para que aumentássemos a família com Rodolfo e Valentina, o maltês e a york, e para que ela me apresentasse sua especialidade de café da manhã: pão de forma com manteiga na frigideira e mel na saída.

Diariamente, Roberta revelava um pouco de seu código de conduta. Era importante, ela dizia, lavar as mãos antes de ir ao banheiro, mais do que depois. Era importante não dar tanto valor a bens materiais como o carro. Besteira ficar lavando, mania boba de desperdiçar água; trata-se de um meio de transporte e não de uma parte do corpo. Repetia que era contra o direito a prisão especial para quem tem diploma. “Quem tem diploma deveria ter mais conhecimento e não fazer coisas erradas”, dizia. “Prisão especial é para quem não tem diploma.” A respeito da Igreja católica era capaz de falar por dias. “Mulher na menopausa não pode transar porque estará pecando?”, perguntava, irônica. Nunca conheci alguém tão cheia de ideias originais, tão capaz de defender um argumento com ponderações lógicas e coerentes. E nunca conheci alguém tão correta: jamais furou uma fila, jamais parou na dupla ou deixou de dar lugar para pessoas de idade no metrô.

Menina prodígio

Engenheira, formou-se na Escola Politécnica da USP com médias altíssimas, e sem uma repetição. Em seguida, fez mestrado e foi convidada para dar aulas. Era conhecida entre os colegas como a mais inteligente da classe. Inteligência que ela usava para calcular prédios enormes, para se tornar uma das engenheiras mais importantes de sua geração e para entreter, mas jamais para se vangloriar. Aprendeu a tocar violão sozinha e a tirar músicas de ouvido. Adorava cantar em voz alta, no chuveiro, e dançar na sala, para deleite de Rodolfo e Valentina. Lia Proust e Saramago, escutava Beethoven e Mozart, mas também gostava de Ken Follen e de Chico e Bethânia, e de Carlinhos Brown e Marisa Monte, e de samba e de axé.Assistia a Fellini e Von Trier, mas também deixava espaço para Calvin, Friends e A Era do Gelo – e a imitação que fazia do professor português de Os Incríveis me fazia sufocar de tanto rir.

Talvez tenha sido a única pessoa no mundo a amar com sinceridade a alface e o Fibrax. Quando naquela primeira noite me disse que seu prato preferido era alface e que de café da manhã adorava misturar Fibrax ao iogurte eu duvidei e achei que, como todas nós, comia coisas desse tipo para não engordar. Mas ela era magra e forte e bem trabalhada e não tinha por que se privar do que gostava. Com o tempo, me provou que dizia a verdade. Aliás, Roberta não mentia. Era possuída pela incrível capacidade de ser sincera, e de amar.

Amava com os olhos, com as palavras, com as mãos, com gestos, com todos os poros. Amava sem se poupar e sem vergonha de se expor, como só os destemidos sabem fazer. Quando chorava, as lágrimas, contrariando os princípios da física, não escorriam pelo rosto, mas pulavam como que catapultadas, fazendo uma parábola no ar. Era um espetáculo, e esse talvez tenha sido o único fenômeno que ela não conseguiu me explicar: todos os outros (como voa um avião, como flutua um navio, como se faz um prédio, como funcionam as marés) me ensinou com paciência budista. Como também me falava da vida, e do que fazemos aqui, e de como somos frágeis e de como só o conhecimento nos permitirá evoluir. Nosso casamento durou cinco anos e, quando acabou, deixou lugar para um amor enorme, companheiro, cheio de cumplicidade e de idas ao Pacaembu.

O outro lado

Recentemente, me falava da vida e da morte. Dizia que estamos de passagem e que este planeta é uma escola. Dizia que, quando fôssemos embora, iríamos para um lugar melhor, desde que tivéssemos feito coisas boas, amado e aprendido. Me mandava ler a respeito de tudo e, de uns meses para cá, me aconselhava a rezar. Não por ela, que raramente ficava doente, mas pela vida, pelo planeta, por paz de espírito.

Dia 5 de novembro ela faria 40 anos. Estava preparada uma festa como nunca havia dado. Buffet, música, cem convidados. O plano era passar a noite dançando e celebrando uma vida que era, entre todas as que eu conheço até aqui, a mais celebrável. Antes de arrumar a casa, saiu para uma corrida, outra de suas paixões. Foi atropelada na Nove de Julho, deixando dezenas de amigos e parentes órfãos de sua companhia e de sua sabedoria.

Com ela, foi embora um jeito raro de ver a vida, e de rir das coisas, e de torcer para o Corinthians, e de amar, e de contar piadas, e de dançar, e de cantar. Com ela, foi embora um pouco de mim, e da pessoa que sempre serei. Mas ela me deixou com dois enormes presentes. Primeiro, me fez acreditar em Deus porque dizia que ele se manifestava na beleza das coisas que criou. É então inapelável pensar que se ela existiu foi obra de uma inspiração divina. E também tirou de mim o medo supremo: o de morrer. Porque, se morrer é ter a chance de reencontrá-la, então não é nada além de um enorme privilégio.

Na antiguidade, tribos africanas se reuniam em volta do fogo para dançar e cantar. Não era raro alguém entrar numa espécie de transe, o que era imediatamente reconhecido como um vestígio de Deus. Nessa hora, os demais começavam a gritar: Alá! Alá! Alá!, em reconhecimento ao vislumbre do divino. Quando os africanos invadiram o sul da Europa, levaram com eles a tradição que, com os anos, passou de Alá, Alá, Alá para Olé, Olé, Olé – esse mesmo Olé que ainda se ouve nas touradas e em alguns jogos de futebol; o Olé que reconhece a presença de um vislumbre de Deus entre os homens.

Então, Rob, duas coisas: obrigada. Por tanto amor, por tanto carinho, pelo colo, pelas risadas, pelo abrigo e pelo Corinthians – e, antes que as cortinas se fechem completamente, te vejo dançando na sala, rodopiando de braços abertos, olhinhos fechados, cabeça aconchegada sobre um dos ombros enquanto eu e todos aqueles que te amam, espremidos por ali, gritam: “Olé! Olé! Olé!”.


A carioca Milly Lacombe, 44 anos, é jornalista. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com

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