por Milly Lacombe
Tpm #113

Milly Lacombe: ”Há 10 anos decidi jogar fora a fantasia e encarar o mundo no meu ritmo”

Quando as rodas do avião tocaram em solo brasileiro o medo estava sentado no assento ao lado do meu. Se prestasse atenção, teria notado o Sr. Medo sorrindo, como sempre faz quando se percebe flagrado. O cara de pau, muito bem barbeado, usava gel nos cabelos, terno, gravata, cartola e bengala – porque, claro, ele gosta de se apresentar da forma mais conservadora possível. Virei o rosto para o outro lado, fingi que aquele sujeito não estava ali e observei minha cidade pela janela.

Depois de sete anos morando fora do Brasil, eu estava de volta. Por que mesmo? Já não sabia mais, e agora a ideia de largar a boa e reclusa vida que levava em Los Angeles e me expor ao subdesenvolvimento do estranho país em que nasci parecia incrivelmente idiota. Dá para ficar aqui dentro e voltar para o hemisfério norte no próximo voo? Sentindo-me amedrontada como uma criança no primeiro dia de aula, olhei para o assento ao lado e lá estava ele, Sr. Medo – gabando-se outra vez.

Fui tirada do devaneio pelas mãos de minha mulher. Tati dizia que tínhamos que descer. Ainda mais esta: quando, em 1996, decidi morar fora, era uma jovem de 28 anos, heterossexual e que ganhava um bom dinheiro trabalhando com marketing publicitário. Mas o voo de volta trazia minha versão “35 anos, homossexual, jornalista, pobretona”. Já podia ver o Sr. Medo, de pé no corredor da aeronave, bengala apoiada junto à perna direita, mão esquerda no bolso do colete, cabeça jogada para trás, gargalhando. Ele tinha toda a razão: moralmente, eu não passaria do primeiro dia.

Enquanto esperava que as malas chegassem, sempre o grande suspense de uma viagem de avião, entendi o tamanho da atrocidade que estava prestes a cometer. Meu sucesso social estava condenado. Como aquela jovem heterossexual e profissional de marketing minhas chances eram ótimas. Ia casar, ter um par de filhos, dinheiro, dois carros na garagem, um cachorrinho e casa própria. E todos sorririam para mim, inclusive minha mãe, porque entenderiam que tinha me dado bem na vida e que eu em nada os afrontava com um estilo de vida fora dos padrões. Mas o que esperar de uma jornalista gay desempregada se aproximando dos 40?

Seguir viagem

Para piorar a situação, minha família não estava no aeroporto. A matriarca, que me ignorava desde o dia em que contei a ela que só conseguia me apaixonar por mulheres, não estaria mesmo. Meu pai, que tinha morrido havia alguns meses, por motivos óbvios também não era esperado. Mas e minhas irmãs? E meu irmão? Foi quando vi Claudio, o motorista, enviado por Nininha para o resgate de meus restos mortais. Era ele e mais ninguém. Numa atitude impensada, como são quase todas as que tomo, saí correndo e me joguei em seus braços. Claudio foi suficientemente elegante para retribuir o afeto sem demonstrar estranheza ou pavor – e acho que foi naquele instante que solidificamos nosso relacionamento de forma definitiva.

Ao alcançar a Marginal e sentir o cheiro podre que vinha do rio, lá estava ele, na garupa de uma moto que ziguezagueava veloz no meio do oceano de automóveis – o Sr. Medo; bengala apontada para o céu, rindo como uma criança. Tão patético que, quando passou sem capacete (naturalmente), nem seus cabelos empapados em gel pareciam fora do lugar. Posso jurar que, ao me notar chorando, deu uma piscadela.

Mas como desistir de me tornar quem era? Não saberia mais. A única chance de cura para o enjoo estomacal é seguir viagem.

Faz dez anos que vi o Sr. Medo passar sorridente, de gel, terno e gravata na garupa daquela moto que costurava o trânsito matinal da Marginal. Dez anos que decidi jogar fora a fantasia e encarar o mundo dançando minha própria música.

Desde então, consegui bons trabalhos como jornalista, sendo este espaço o melhor deles, viajei de avião para Brasília com Nina Lemos, fui demitida de um emprego que odiava, ridicularizada em rede nacional de TV, lancei quatro livros, juntei uma graninha, perdi toda a graninha para pagar as contas de um empresário safado que fugiu do Brasil (e nessa hora ter optado pelo jornalismo se mostrou sábia atitude, porque meu tudo não era muito, embora fosse tudo), voltei a ser vista por minha mãe, conheci Roberta, perdi Valentina, sofri por amor, fiz sofrer por amor, ganhei mais seis sobrinhos lindos, construí uma casa no meio do mato, chorei sozinha em meu quarto e, numa noite fria de maio, encontrei o amor de minha vida dentro de um teatro no centro da cidade.

Perder é fundamental

Desde então, entendi que não existe vida se não houver a chance real de fracassar, que o fracasso é como a demissão e a fossa – inevitável para fins de enobrecimento de caráter –, que o caminho para nossa própria verdade passa obrigatoriamente pela dor, que vencer é delicioso mas perder é fundamental, e que reside justamente nessas experiências a beleza de toda a jornada humana.

Volta e meia, ainda vejo o Sr. Medo ziguezagueando por aí em garupas de motocicletas apressadas. É o mesmo de antes, mas já não está mais em terno nem usa cartola. Agora, barbudo e cabeludo, anda de bermuda, camiseta e chinelo – depois de me tornar quem era, o Sr. Medo transformou-se em alguém com quem posso tomar uma cerveja no fim de uma tarde de verão.

Nessas ocasiões, ele fica ali me olhando e sorrindo, mas agora, em vez de apavorar, apenas desafia. Porque, como ele mesmo gosta de dizer antes de dar mais um gole na cerveja gelada, não existe vida que valha ser vivida sem a real possibilidade de fracassar estrondosamente. E, diante disso, só nos resta aceitar o frio na barriga e reconhecer aqueles breves clarões de emoção que costumam aparecer no meio de uma quarta-feira qualquer – é nessas fendas temporais que se esconde a tal da felicidade.

A carioca Milly Lacombe, 44 anos, é jornalista. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com

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