Sobre mães e avós

por Milly Lacombe
Tpm #108

A mãe da colunista Milly Lacombe deixa toda a brabeza de lado e hoje é simplesmente avó

Bruna não queria ir para a escola usando aquele par de tênis. Por algum motivo misteriosíssimo, o calçado, que funcionou tão bem por meses, naquela manhã insuportavelmente quente de terça-feira, passou a ser inadequado para a roupa que ela vestia – o uniforme, que era, portanto, o mesmo de todos os dias há pelo menos duas temporadas.

Mas Bruna, apesar dos 6 anos, julga ser fashionista, acordou invocada e decretou que o tênis já não combinava mais com a roupa. Para deixar claro que a peça não seria usada, iniciou uma rotina de gritos, esperneios e choros sem precedentes.

Como minha irmã, mãe da estilista mirim, optou por ignorar o espetáculo, Bruna disse, ainda aos prantos, que então iria para o colégio descalça.

Foi mais ou menos nessa hora que minha mãe e eu chegamos para almoçar. Eu estava ali porque não tinha o que comer em casa e não queria cozinhar o ovo de todos os dias. Como vizinha, invado o lar de minha irmã justamente no horário das refeições com frequência assustadora.

Já a matriarca estava ali porque, depois do almoço, iria levar Bruna e sua irmã Mel para a aula. Na mesa, quando ficou sabendo do escândalo do sapato, minha mãe simplesmente disse: “Nininha, resolva isso antes de voltar para o trabalho porque você sabe que eu não obrigo criança a fazer coisa alguma”.

Por sorte, eu estava entre garfadas e não corria o risco de engasgar até a morte como desgraçadamente aconteceu com a vocalista do The Mamas & The Papas.

Toda a minha infância pode ser resumida em coisas que a matriarca me obrigou a fazer. Aquele era, portanto, o corpo de minha mãe desencarnado e possuído por algum tipo de alma santa que aportou ali com 40 anos de atraso.

Pedi para ela repetir o que tinha acabado de dizer, e ela, vendo que sua rainha estava sendo conduzida para um canto perigoso do tabuleiro, respondeu apenas: “Esse suco aí é do quê?”, naquela familiar tentativa de encerrar o jogo bagunçando todas as peças.

Simplesmente avó

A verdade é que minha mãe já não é mais a mulher brava e mandona que determinava o destino dos outros cinco membros da família, escolhendo quem seria preso, quem seria solto e qual o tempo da pena de cada um. Minha mãe não fica mais de mau humor, não grita, não ameaça, não reprime, não censura, não julga. Minha mãe, hoje, é simplesmente avó.

E, como avó, ela apenas oferece colo, carinho, passeios, travessuras, sorvetes e, especialmente, macarrão. Por essa Nonna, os nove netos babam.

É como avó, aliás, que ela faz parte da lista das mulheres mais ocupadas do mundo.

Para evitar contratempos, minhas irmãs e meu irmão, nove filhos entre eles, mantêm uma espécie de agenda informal. Tudo a fim de acomodar os horários da Nonna.

Às sextas, por exemplo, Mel e Bruna passam a manhã com ela. À noite, é a vez de Estela, 10 anos, a garota que carrega nela todas as perguntas do universo. Quando quis saber o que faziam juntas, minha mãe explicou: “Ah, Estela é um ótimo papo. A gente conversa sobre tudo, faz macarrão, vai ao cinema”.

Aos irmãos de Estela ela reserva as tardes de segunda a sexta, aleatoriamente. Pode, por exemplo, buscá-los na escola elevá-los para tomar um lanche, ou levá-los para casa e fazer um macarrão.

O macarrão é uma das coisas que ainda atraem Antonio, 15 anos. Volta e meia ele telefona com o papo de que está com saudade e, quando ela se oferece para fazer o macarrão, ele imediatamente se materializa em sua casa.

Antonio, por sinal, é o neto que, quando meu pai morreu, foi visto fazendo uma malinha e, ao ser perguntado a respeito daquilo, disse apenas: “Tô indo morar com a Nonna. Alguém tem que cuidar dela agora”. O moleque tinha 5 anos. E ainda posso jurar que estava apenas encontrando um bom motivo para se mudar para mais perto do macarrão.

Paulo, o primogênito, também liga para papear, mas já não solicita tanto, o que confere um pouco mais de equilíbrio à agenda.

Disk Nonna

Em compensação, minha mulher resolveu entrar na disputa alegando que, porque não temos filhos, somos excluídas da agenda e do macarrão, o que não deixa de ser verdade. Indignada, começou a ligar diretamente para o 0800-Nonna e solicitar jantares, que são sempre regados a muito vinho e prontamente atendidos.

O problema é que minha mãe resolveu anunciar que vai morrer este ano. Quando perguntei como se daria isso, ela respondeu apenas: “Assim, bum”, virando a palma da mão para cima e deixando o antebraço cair rígido sobre a almofada do sofá.

Não há, com efeito, nenhuma razão para a previsão. Ela não está doente, não parece cansada, pelo contrário, e muito menos deprimida. Meu irmão, médico, diz para ignorarmos porque o que morreu mais cedo na família dela tinha 95 anos.

Mas eu não consegui ignorar; preferi apostar. Mil reais. Se no dia 31 de dezembro Nonna ainda estiver inteirinha, vai ter que me pagar. Meu irmão, muito mais esperto, sabendo da barganha ligou e pediu 10 mil.

Ainda tentei argumentar que morrer agora seria um despropósito. Especialmente para alguém que parece ter evoluído para se tornar um ser humano que só faz distribuir amor, e que recebe o carinho de volta em doses equivalentes. Não seria essa uma das melhores fases da vida? Por que sair da festa justamente quando a melhor série de músicas começou a ser tocada e a pista ficou lotada?

Ela me ouviu sem dizer nada e depois, rindo, repetiu o gesto do “assim, bum!” antes de se levantar para pegar mais uma taça de vinho.

Talvez a velhice seja mesmo a mais inesperada de todas as coisas, como disse Trotsky. Mas, no caso de minha mãe, parece ser também a mais doce. “Toda a gente vive apressada e sai-se no momento em que deveria chegar”, escreveu Proust. Não acredito que a matriarca, sempre tão festeira e inquieta, vá nos fazer essa desfeita.

 

A carioca Milly Lacombe, 43 anos, é jornalista. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com

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