O debate sobre o aborto chega à Capital Federal

por Milly Lacombe

Em agosto, a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado realizou a terceira audiência que propõe a regulamentação do aborto pelo SUS até as 12 primeiras semanas

Diante de toda a turbulência política pela qual passa o Brasil, quase nem ficamos sabendo que em agosto a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado realizou a terceira audiência que propõe a regulamentação da interrupção voluntária da gravidez pelo SUS até as 12 primeiras semanas. A quarta acontecerá no final de setembro e seria bacana que até lá nos manifestássemos sobre o tema de forma pública.

Relatos de quem esteve nessa terceira audiência dizem que a bancada religiosa atuou com enorme desfasatez, não deixando que aqueles que falavam a favor da interrupção da gravidez conseguissem concluir um discurso ou uma ideia. O fanatismo religioso já não deveria mais chocar, mas a deselegância e a vulgaridade não podem cair na aceitação.

É uma pena que sejam sempre os mesmos a tentar impedir o diálogo, sempre os mesmos a tentar calar e sufocar qualquer luta em nome da emancipação da mulher. A história da humanidade tem registros grotescos de ações intolerantes e discriminatórias tomadas em nome do fanatismo religioso e, apesar disso, ela não cansa de se repetir.

É curioso notar que os mesmos que gritam e esperneiam contra a prática sejam aqueles a favor de coisas como pena de morte, os mesmos que, muito preocupados em salvar uma vida – porque consideram o feto uma vida – não estejam gritando contra a morte de crianças por sede, fome e diarreia, porque crianças ainda morrem de sede, fome e diarreia por aí.

Também não estão preocupados com a morte de mulheres pobres que se submetem a abortos clandestinos. A grande e única preocupação deles é o feto, que consideram, por crença religiosa, uma vida.

Passear por esse campo é delicado porque uma célula também é uma vida e a gente mata milhões delas em um simples banho. Então o argumento de "o feto é uma vida" joga o debate numa estrada escura, sem fim e cheia de curvas, impedindo completamente o diálogo.

Os "a favor da vida" não querem também discutir o fato de que o aborto entre mulheres ricas é praticado desde sempre, e que as únicas que pagam – muitas vezes com suas vidas – a conta da proibição são mulheres pobres. Isso não os preocupa. O importante é proibir em nome do Deus deles, mesmo sabendo que ricas continuarão fazendo e pobres continuarão morrendo. 

Claro que ser contra o aborto é um direito tão legal quanto ser a favor, mas há maneiras mais inteligentes de evitar que mulheres precisem abortar, e elas passam por garantir que toda a mulher tenha acesso a educação sexual e a consultas ginecológicas regulares por exemplo. 

Não seria essa uma batalha mais justa? Por que aqueles que são contra o aborto, ou "a favor da vida" como gostam de gritar, não estão em campanha por todas as vidas – a dos fetos que eles acreditam ser uma, a das crianças que morrem de sede, a das mulheres que abortam ilegalmente… por que lutar por algumas vidas apenas?

Por que não evitar o aborto exigindo, com o mesmo furor que querem proibir a interrupção da gravidez, educação sexual, distribuição gratuita de camisinhas e acesso a consultas ginecológicas para toda a mulher?

Talvez porque se por um lado eles são contra o aborto, por outro são também contra camisinhas, e relações sexuais antes do casamento, ou relações sexuais sem fins reprodutivos, ou educação sexual porque isso estimularia o desejo em adolescentes. Pensar e agir assim é como tentar segurar o pôr-do-sol esmagando a estrela entre o dedão e o indicador: é impossível, é ignorante, é constrangedoramente estupido. Pegar esse caminho é, outra vez, paralisar qualquer tipo de debate maduro e inteligente sobre o tema.

Em relação ao feto ser uma vida, é tão legítimo acreditar nisso quanto não acreditar nisso. Por que uma crença precisa se submeter à outra? Por que a "minha" é certa e a "sua" errada? Entender a diferença tiraria a religião do debate – o que em muito engrandeceria o diálogo. Forçar seu Deus e suas crenças goela abaixo de "irmãos" não vai nos levar a lugar nenhum e apenas um Deus punitivo e vingador seria a favor de atitudes violentas como essas.

A quarta reunião acontecerá no dia 24 de setembro em Brasília. Seria bacana se até lá conseguissemos nos manifestar, enviar emails para nossos representantes, organizar movimentos etc. A democracia anda capenga, mas ainda existe espaço para que sejamos escutadas. E, a bem da verdade, não há força política maior do que a voz do povo. 

Falar de aborto nunca vai ser muito fácil. É questão complexa e delicada, mas, também por causa disso, é preciso debatê-la. Se não agora, quando?

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