Sobre band-aids e meninos

por Natacha Cortêz

Ana Guadalupe encanta e cria poesia falando de doçuras e azedumes do cotidiano

Se as palavras são linhas fiéis de seus tempos, capazes de ilustrar e guardar nuances e memórias, Ana Guadalupe, 26, entendeu bem o recado.

Ana é poetisa. Paranaense, mas vive em São Paulo há pouco mais de um ano, é formada em Letras e escreve desde pequena. Os poemas dela conquistam quase que instantaneamente. Deve ser porque fala de todas as coisas mais simples que rodeiam a vida como quem fala de um ataque terrorista durante o sucrilhos no café da manhã. É leve, mas pesado ao mesmo tempo. Faz parte de seu estilo retratar pequenas angústias que de tão ordinárias constroem os azedumes e doçuras do que se vive hoje.

“Pensando nos poemas que escrevi, vejo que já me inspirei num band-aid jogado no lixo, em pratos de comida vazios, em lembranças do passado, em sacolas de supermercado, em jogos de videogame, em meninos de quem eu gostava, nas futuras namoradas dos meninos de quem eu gostava, em uma encomenda que o correio nunca entregava”, diz ela.

No ano passado, teve seu primeiro livro lançado, Relógio de Pulso, pela Editora 7Letras. Ainda em 2011, teve  poemas seus nas antologias Peso Pena e Otra Línea de Fuego - Quince poetas brasileñas ultracontemporáneas (Espanha). Na internet, escreve no blog Roxy Carmichael Nunca Voltou, onde publica e fala de poesia e também divide outros temas de seu interesse.

Conversamos com ela sobre poemas, referências, internet e sobre São Paulo. Depois de ler o que nos conta, correr para o blog e se render aos poemas é uma questão de segundos.

Como e quando começou a escrever? Pode contar um pouco sobre sua relação com a poesia?
Comecei, como a maioria, a escrever na escola, por diversão. Percebi que gostava já no primário, fazendo redação, e escrevia historinhas, peças de teatro, coisas parecidas com roteiros de seriados imaginários, mas ainda não escrevia poesia. Meus pais tinham escrito poesia na juventude, então tinha livros em casa, e o interesse pela poesia veio desse contato. Fui escrever os primeiros poemas lá pelos 13, 14 anos e continuei. Com 16 comecei a escrever com mais afinco, mas sempre sem muita ansiedade pra "ser boa" ou publicar.

Sempre pensou em escrever poesia? Antes dela tentou outros estilos?
Não pensei, no começo da adolescência achava que escreveria prosa, mas aconteceu mais naturalmente de escrever poemas. Não sei o porquê. Depois tentei prosa (conto, crônica) algumas vezes, mas vi que tinha dificuldade. Ainda tenho, mas ainda pretendo tentar com mais frequência.

Métrica, forma e tema são características que se destacam no teu trabalho, justamente por seguirem um estilo. Onde você aprendeu a usar essas características?
Tenho interesse em pensar melhor na métrica, por exemplo, o que faço atualmente é uma medida mais intuitiva, muitas vezes. Acho importante pensar na forma do poema, experimentar diferentes coisas, já que isso é uma das coisas que faz poesia ser tão legal, mas não acho "obrigatório". Também acho que muita "técnica" pode estragar, assim como a ausência dela. Vejo que muitos escritores estudam ou estudaram Letras, mas no meu caso o curso mudou pouco minha maneira de escrever. Escrevia antes [do curso] de um jeito muito parecido. Talvez estudar a língua e a literatura faça com que você exija mais do que escreve e seja mais consciente.

Ana, li também que foi no blog que você começou a publicar as poesias. Desde de 2007, certo? Quando começou a publicar, qual era a sua intenção?
Eu tinha um blog antes, muito adolescente, mas onde já publicava poemas. Esse antigo comecei em 2002. Em 2005 fiquei com vergonha e decidi que não teria mais blog, e em 2007 resolvi voltar. Não sei qual era a minha intenção, acho que fazer amigos [risos].

A internet não só é tema recorrente no que você escreve, como deu força e notoriedade pro teu trabalho. Você acredita que ela é seu maior meio de expressão? Até onde ela influência sua escrita?
Escrevi uns poemas envolvendo a internet só de uns tempos pra cá, porque achei que podia homenageá-la de alguma maneira, já que foi parte importante da minha vida. Mas, sim, sem a internet eu não teria publicado nada, nem lido muita coisa, nem conhecido muita gente. É meu maior meio de expressão, sim. Influencia a minha escrita como muita coisa influencia. Não sei se adoto realmente o que chamam de "linguagem da internet", não sou muito adepta de memes e brincadeiras, mas gosto de usar as referências que encontro na internet.

O que te inspira a escrever?
Não sei responder isso de maneira contundente ou "poética". Pensando nos poemas que escrevi, vejo que já me inspirei num band-aid jogado no lixo, em pratos de comida vazios, em lembranças do passado, em sacolas de supermercado, em jogos de videogame, em meninos de quem eu gostava, nas futuras namoradas dos meninos de quem eu gostava, em uma encomenda que o correio nunca entregava. Tenho vontade de escrever mais sobre comida, por exemplo.

Infância, cotidiano, amores, doçuras e desesperança são sentimentos de quando leio suas poesias. Por que eles?
Não sei. Acho que poesia é legal também porque as interpretações são mesmo bem pessoais, por mais bobo que isso pareça. Acho bonito que algumas pessoas tenham lido meu livro e falado "nossa, achei muito depressivo e triste" ou "não entendi nada", outras tenham percebido só o conteúdo de "memórias da infância" ou "amores platônicos", e outros ainda tenham falado "dei muita risada". Eu acho que são poemas variados, com algumas coisas em comum. Alguns poemas são irônicos e falam sobre planos odontológicos, filmes pornô, iogurte estragado.

Quanto você se expõe nas poesias? Existe alguma situação engraçada que você possa contar sobre ter se entregado nelas?
Acho que criar qualquer coisa sempre envolve exposição. Mas às vezes uso "fatos verídicos", às vezes não, não sei se me sinto "exposta". Acho que não. Já aconteceu de ser mal interpretada por causa de um poema que não representava minha opinião real, ou meu sentimento em relação a algum tema.

Quais são os poetas e escritores que você mais admira? E quais foram os que te levaram à poesia?
Admiro e leio os poetas contemporâneos, brasileiros, são muito bons. Os que me levaram inicialmente à poesia são aqueles que a gente lê na escola e na biblioteca na juventude, tipo Manuel Bandeira, Drummond, Mário Quintana, Ana Cristina Cesar, Leminski, Alice Ruiz.

Hoje, consegue se manter só escrevendo? É uma vontade?
Não e nem tenho pretensões. Mas me mantenho escrevendo porque escrevo pra publicidade há alguns anos, e pro que mais aparecer. É uma vontade sempre continuar escrevendo porque é uma das poucas que gosto de fazer.

Você foi considerada um dos grandes nomes da poesia jovem nacional atual. Como vê isso?
Acho que a internet um ótimo lugar pra quem escreve e tem muita gente escrevendo. Eu fico bem surpresa e contente por ter conseguido alguns leitores, nunca fui do tipo de pedir "olha, escrevi um poema, lê aí".

Como São Paulo influenciou sua escrita? Mudou alguma coisa?
Ainda não sei dizer se influenciou realmente, mas tenho a impressão que, vindo do interior pra cá, fiquei mais consciente de algumas coisas. Talvez mais irônica, o que pode ser bem ruim. Talvez eu esteja bem errada, mas acho que no interior todo mundo tende a ser um pouco mais alienado e talvez mais ingênuo, por mais sarcástico e esperto que a gente tente ser.

Como escrever poesia interferiu no seu crescimento pessoal? Digo, nas passagens e mudanças da vida adulta.
Dizem que quem escreve observa mais as coisas. Eu não sei se percebo as diferenças. Percebo que esperam do "poeta" uma inclinação constante à profundidade, à reflexão, e isso pode ser frustrante pra todo mundo. Acho que, pra quem escreve, a poesia ou a prosa podem ser sim "terapêuticas", uma maneira de organizar ou expressar algumas emoções. Já escrevi poemas que tinham esse valor terapêutico pra mim, mas não sei se isso é tão legal.

Algumas poesias suas foram escolhidas para tradução em uma coletânea de língua espanhola. Pode falar mais sobre esse projeto?
Sim, foi uma antologia bilíngue publicada em 2009 em Málaga (Espanha) que foi organizada pela Heloísa Buarque de Hollanda. foi a primeira vez que vi meus poemas em livro, e foi muito emocionante porque a seleção envolve várias décadas, acabei dividindo livro com a Ana Cristina Cesar e a Alice Ruiz, por exemplo, além das poetas jovens que admiro.

Quais são os planos daqui pra frente? Existem projetos que você pode nos adiantar?
Tenho colaborado com projetos e revistas que aparecem. Não sei quanto tempo vou demorar pra terminar um próximo livro e não tenho me pressionado tanto a fazer isso. Meu plano é continuar escrevendo, de preferência com mais coragem e disciplina, mas se conseguir só manter o ritmo de sempre, tudo bem. Sem pressa.

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Abaixo dois poemas da Ana:

guerra
(do "relógio de pulso")

tique nervoso
à espera de alguém
que venha

beber água
desabotoar as calças
jogar bola

atirar no macio
arrancar os músculos
acumular fôlego

pra sufocar
com o próprio peso
o peso do outro:

uma bigorna
um piano
um travesseiro.

queria ser a marisa tomei
(inédito em livro)

analisar marisa
em mais um dos papéis
de esposa do traficante
amante do lutador de boxe
garçonete que se apaixona
pelo cardíaco triste e tímido
que tremerá de corpo inteiro
ao tocar a pele lisa e macia de marisa

marisa é vendedora de calcinhas
divorciada com filhos pequenos
dançarina no escuro das boates
marisa nunca está numa boa
e mesmo assim marisa se diverte
chega aos 60 com cara de 20
toma limonada e refrigerante
tiros sem perder o sorriso
facadas na sacada do flat
mais facadas numa quitinete

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