Cordelista e feminista: protesto contra a opressão

por Natacha Cortêz

A cearense Jarid Arraes encontrou no cordel sua voz contra o machismo e o racismo que sofre e assiste o outro sofrer

 

"Estatísticas não mentem:
Sofre mais a pobre e preta
Já que o dinheiro oferece
Pro aborto uma faceta
Que é pagar nas escondidas
Noutro lugar do planeta."
 

Os versos acima, rimados e construídos de forma metódica, são um trecho do cordel Aborto, escrito pela cearense Jarid Arraes, de 24 anos. No poema, ela expõe o cenário do aborto ilegal no Brasil e reivindica mudanças. "É minha forma de mostrar indignação pelas mulheres que morrem todo ano no país."

Nascida e criada em Juazeiro do Norte, Jarid é íntima da literatura de cordel desde criança. Seu pai e avô são cordelistas e também fazem xilogravuras (técnica na qual se usa madeira como matriz e a reprodução da imagem é geralmente gravada sobre papel). "Cresci nesse contato direto com o cordel, que é uma manifestações da cultura popular nordestina. Eu era a primeira a ler os cordéis do meu pai e do meu avô, que tratam de assuntos mais politizados em suas obras - é o que chamamos de Cordel Engajado."

Quando começou a produzir os seus, Jarid não teve dúvida de eles também seriam politizados. "Escrevo sobre o que me deixa engasgada", diz. Mulher, negra e nordestina, Jarid transforma suas vivências em versos rimados. "Os temas foram surgindo a partir da minha própria experiência, dos preconceitos e assédios que sofro diariamente e assisto o outro sofrer", revela. 

Além de cordelista, Jarid é comprometida com projetos sobre direitos humanos e tem uma coluna semanal na revista Fórum, chamada Questão de Gênero. Por lá, ela publica textos de opinião e também cordéis. Um dos últimos, "Não me chame de mulata", viralizou e causou discussões na internet. "Recebi dezenas de comentários me xingando por causa do cordel ‘Não me chame de mulata’. Por outro lado - e esse, sim, vale a pena - já li pessoas afirmando que nunca mais usarão o termo", escreveu em sua timeline do Facebook.

Conversamos com Jarid sobre cordel, mulheres inspiradoras e ativismo dentro e fora da internet.

Tpm. Quando publicou seu primeiro cordel? Sobre o que ele falava?
Jarid. Foi em Janeiro de 2014, logo no início do mês, e tive a oportunidade de fazer seu lançamento em São Paulo, num encontro feminista. O título desse primeiro cordel é "Dora, A Negra e Feminista" e fala sobre uma personagem que cresceu sofrendo com o racismo e o machismo e, mas que se sentiu inspirada por grandes mulheres negras de nossa história, entrou na universidade pelas cotas raciais e conquistou um final feliz. Na verdade, Dora é muito de mim e de incontáveis outras negras que escrevem e relatam suas experiências de vida. A intenção realmente foi trazer algo representativo.

Quem são suas mulheres negras inspiradoras? Algumas das mulheres negras que mais me inspiram são Dandara dos Palmares, sobre quem fiz um cordel biográfico, Lélia Gonzalez e a rapper Luana Hansen. Na verdade, sinto até que devo citar a maior quantidade de mulheres que puder lembrar, pois nos faltam profundamente essas referências. Não aprendemos sobre elas na escola, não vemos seus nomes na mídia, até mesmo dentro dos movimentos sociais essas mulheres são esquecidas. A lista é grande: Luísa Mahin, Tia Simoa, Sueli Carneiro, Jurema Werneck, Laudelina de Campos, Creuza Oliveira, Antonieta de Barros, entre muitas outras, todas extremamente relevantes para a história do Brasil.

Os desenhos dos cordéis também são seus? As capas dos cordéis são ilustradas com xilogravuras, a maior parte dessas xilos são do meu pai, Hamurabi Batista. 

Os temas que você aborda nos cordéis tratam de gênero, de sexualidade, e de tabus que sempre rondaram as mulheres e os LGBTs. Por que escolheu esses temas? Escolhi falar de gênero, questões raciais, sexualidade e outros temas relevantes como esses, porque a tradição do cordel ainda é repleta de histórias que retratam mulheres, pessoas negras e LGBTs de forma pejorativa. Pensei em manter viva a tradição do cordel, mas abordar temas que nos ajudam a caminhar sempre em frente. Isso porque o cordel é um importante veículo de informação, protesto e ensino; nada mais adequado do que escrever histórias e personagens que tragam representações melhores desses grupos marginalizados em nossa cultura.

Na resposta anterior você comenta que os cordéis costumam retratar mulheres, pessoas negras e LGBTs de forma perjorativa. Me explica isso melhor? Eles são machistas? É diferente, mas ao mesmo tempo é muito parecido. No Cariri (região do Ceará de onde Jarid veio) a gente tem acesso ao cordel e outras manifestações da cultura popular, mas a verdade é que esse tipo de arte e tradição vai se perdendo. Isso acontece porque as pessoas mais jovens, como eu, acabam não se interessando; há muita influência da mídia nesse sentido, já que a televisão dita qual vai ser a moda, a cultura e até as expressões idiomáticas do povo. É triste, porque no centro de Juazeiro do Norte existe o Centro de Cultura Popular Mestre Noza, onde cresci e passei grande parte da minha infância. É um lugar lindo, onde os artesãos trabalham em comunidade, e fica num local super acessível, mas pouca gente dedica um tempo para ir lá conhecer, comprar um cordel, um peça de madeira ou palha, enfim. Ou seja, a lógica sudestina e midiática sufoca a cultura de outros lugares, como o nordeste.

Você vende os cordéis através do seu site? Onde mais? Vende bastante? Vendo através do meu site, onde é mais fácil de me encontrar, mas também vendo em feiras e eventos. Quando sou convidada para participar como debatedora ou palestrante, também levo meus cordéis. Felizmente, vendo bastante. As pessoas se interessam pela Literatura de Cordel e acho que esses temas geram um sentimento de acolhimento; é muito gratificante, principalmente porque o cordel é um tipo de literatura muito acessível, bem baratinha.

Quanto custa quanto um cordel? Vendo meus cordéis por R$ 2 cada. O preço pode variar um pouco dependendo de quem vende e onde vende, mas nunca vi ser mais caro do que R$ 5.

Aliás, além de ser cordelista, você é escritora. Certo? Você basicamente ganha a vida escrevendo? Sim, meu trabalho é escrever. O que é curioso, porque desde pequena sonhava em ser escritora, mas foi algo que aconteceu muito "naturalmente". É claro que aí entram muitas questões sociais complicadas, como o fato de ser mulher, negra, do interior do Ceará, entre outras coisas que dificultam a vida como escritora. Ainda vivemos uma lógica elitista, racista e machista no contexto da literatura e do jornalismo, então é muito difícil conquistar um espaço e se manter criando, produzindo.

A maioria dos cordelistas são homens, especialmente no nordeste. Você contraria toda a história de que cordel é coisa de sertanejo. Já se sentiu oprimida alguma vez? É verdade que a maioria dos cordelistas são homens, especialmente se levarmos em consideração a questão do destaque e da visibilidade. Os homens são aqueles que mais conquistam essa visibilidade, embora a literatura de cordel a cultura nordestina sejam extremamente preteridas no Brasil. Eu conheço várias cordelistas mulheres, algumas até mesmo se identificam como feministas, mas enquanto crescia não tive referências femininas no cordel, isso foi algo que descobri depois de crescida. O contexto do cordel não é diferente do restante da sociedade: são as pessoas que criam ideias misóginas e excludentes, então é lógico que existe mais dificuldade para as mulheres cordelistas.  Aprendi a identificar e combater o machismo, o racismo, mas já vivi situações em que tentaram diminuir meu espaço ou desdenhar das minhas obras. Não por acaso, uma das barreiras mais difíceis de romper, nesse caso, é também a do preconceito contra o nordeste e tudo o que as pessoas nordestinas produzem.

Me indica mulheres cordelistas que você lê? Outra mulher cordelista que posso indicar é a Salete Maria, que tem mais de 20 anos de cordel e é uma mulher feminista. Os cordéis dela também estão disponíveis em um blog, o Cordelirando www.cordelirando.blogspot.com

Você se tornou uma representante da luta negra e feminista. Me conta mais sobre isso? Os seus textos na Fórum dizem muito sobre esse posicionamento, sobre ser negra e mulher no Brasil. Me considero tão representante da luta negra e feminista quanto todas as outras mulheres negras que resistem diariamente, cada uma no seu contexto de vida, nas mais diversas profissões. O fato de eu ter um espaço em um revista de esquerda é muito importante, sobretudo porque esses espaços ainda são de difícil acesso para as mulheres negras, mas não é algo que deve me oferecer qualquer status especial. Pelo contrário, tenho sempre em mente que há um compromisso da minha parte e me esforço para ampliar as vozes de outras pessoas que devem ser ouvidas. De certa forma, o cordel e a atuação na Fórum são similares: tudo o que desejo fazer é um pouco de diferença na sociedade, ajudar a despertar questionamentos incômodos e auxiliar na conscientização de mais pessoas. Porque tudo isso diz respeito a grupos de pessoas, são fatos sociais, são questões importantes para mim e para muitas outras mulheres.

Vai lá: jaridarraes.com

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