por Noor Shakouj

’’Quando começou a escurecer, o motor simplesmente parou. Naquela hora tive certeza de que o tal ‘comandante’ não tinha a menor ideia do que fazer’’

Muito tempo passou e muita coisa aconteceu. A vida realmente não ia rolar na Turquia, trabalhando em um bar. Recém-completado um ano do falecimento de seu pai – e de sua mudança oficial para a Turquia - o maior intuito da síria e refugiada Noor Shaguj parecia inatingível. Voltar a estudar ficava cada vez mais longe. Junto com Diala e seu irmão, Joud, Noor decidiu, há um mês, partir mais uma vez rumo a Europa. Desta vez, a viagem seria mais arriscada. Desta vez, Noor embarcaria em um bote e atravessaria sua primeira fronteira, até a Grécia, pelo mar. 

Na primeira viagem, Noor e Diala foram levadas pelo impulso de uma multidão que se organizava e toda a agitação de Mulham - amigo com espírito revolucionário que continua em Istambul e está trabalhando em um restaurante. Nesta tentativa tudo era mais certo, caro e perigoso. Joud sairia com as meninas. Era preciso entregar o apartamento e se desfazer de absolutamente tudo. Desta vez, não teria volta a Istambul.  Estavam focadas e nada poderia dar errado. Foram dias planejando rotas, checando condições climáticas e oceânicas em um aplicativo de celular, empacotando a vida. Entre abraços apertados e pilhas de lembranças, ‘eu sei que eu posso morrer’ surgia engasgado em diversas despedidas. 

Foi preciso conseguir dinheiro mais uma vez. Noor ligou para um tio, na Síria, que mandou mil dólares. Diala e Joud receberam a grana dos pais, que também como refugiados, pararam na Turquia na busca de refazer a vida. 

Doaram muitas roupas. Fizeram malas com documentos e outras tantas para deixar com os parentes recém-chegados em Bursa, cidade há duas horas de Istambul. Com a casa vazia, partiram para Izmir, na costa turca, de onde cruzariam o mar até a Grécia e rumariam à Alemanha. Era dia 30 de novembro. 

Dia 1 (de novo) e a saída da Turquia – 30 de novembro de 2015

“Na chegada a Izmir já encontramos a pessoa que iria nos atravessar e, de cara, ele já disse que viajaríamos ainda naquela noite. O pai de Diala e Joud foi na mesma tarde de Bursa para Izmir, ao nosso encontro. Alguém da nossa confiança deveria ficar com o dinheiro até o fim ‘bem sucedido’ da travessia, para então fazer o pagamento. Passamos a tarde na casa desse atravessador. Algumas horas depois, houve uma mudança nas condições do mar e cancelaram os planos. O jeito foi passar a noite na casa dele para viajar no outro dia. Sempre com as mesmas palavras, por dois dias esse ‘atravessador’ adiou a viagem. Começamos a desconfiar e procuramos uma outra pessoa. Passamos mais duas noites em um hotel na cidade até  partimos, as dez da noite, de taxi. Trocamos para um ônibus meia hora depois. Com as ruas cheias de policiais e fiscalização, claro, fomos parados a caminho do ponto de onde chegaríamos ao mar. Fomos liberados depois de um ‘pagamento’ do nosso motorista. Mesmo ‘liberados’, paramos na estrada por oito horas, a espera do momento certo – sem polícia - para chegar ao barco. Era de manhã quando começamos uma caminhada longa até o que seria o então ‘ponto de partida’ – a hora de embarcar.

Pelo caminho, até esse ‘porto ilegal’, pessoas que estavam há semanas procurando uma saída. Sem condições de arcar com mais algumas centenas de dólares nessa travessia, apenas ficavam. A maioria, gente do Afeganistão. Os sírios que iam ilegalmente naquele momento eram poucos. Comparados com os afegãos, éramos como 30%. 

A travessia – 3 de novembro de 2015 

“Saímos deste tal ponto de partida apenas às sete da noite. Consegui contar 52 pessoas a bordo, mais a tripulação. O nosso acordo era para 36. Mas já não havia mais tempo para reclamação. Eu estava sentada ao lado do ‘comandante’. Me pareceu num primeiro momento um tanto perdido. Foi uma hora apenas navegando, estava numa boa. Quando começou a escurecer, o motor simplesmente parou. Naquela hora tive certeza de que o tal ‘comandante’ não tinha a menor ideia do que fazer. Tentou partida mais de uma vez e nada aconteceu. Crianças e mulheres começaram a chorar e a gritar. ‘Estamos morrendo! Estamos morrendo!’. O desespero e a agitação das pessoas fazia com que o barco balançasse. Foi terrível. Tentamos ficar calmos. Fizeram contato com a polícia turca em terra, pedindo resgate. Não sei quanto tempo passou, mas a polícia grega apareceu. Resgatados, fomos para uma ilha e nosso primeiro acampamento. Nos deram roupas secas, comida e foram receptivos.

Naquela mesma noite, nos levaram para um segundo acampamento, onde deveríamos pegar alguns documentos que nos deixariam legais na Grécia por 17 dias”. 

O maior medo – 4 de novembro de 2015

“Aquela noite foi aterrorizante. Chegamos ao acampamento e tinha gente dormindo por todos os lugares. Pelo chão, ao redor das barracas. Absolutamente abarrotado. Soubemos que estava acontecendo um protesto dos barcos que ligam as ilhas. Não entendi bem a razão, mas esses barcos não estavam saindo nos últimos dias. Apenas pensei: se cerca de 50 barcos chegam nesta ilha todo dia, cada um com umas 50 pessoas e, nos últimos dias, nenhuma delas seguiu adiante, isso está o caos. E estava. Não eram apenas sírios. Tinha gente de todo lugar. Do Afeganistão, do Irã... Estávamos cansados e com fome. Chegava a ser mais assustador que o quase naufrágio de algumas horas antes. Conseguimos um edredom para dividir entre os três num chão qualquer. Foi mais uma noite sem dormir”. 

A maior alegria – 7 de novembro de 2015

“Na manhã do outro dia pegamos um taxi - pagamos mais por sermos ilegais - e chegamos ao terceiro acampamento na Grécia, onde, finalmente, conseguimos pegar os primeiro documentos. Aqueles papéis eram nosso passe verde no país. Com aquilo nas mãos podíamos pegar ferry, taxi e até aviões para qualquer outro lugar dentro daquelas fronteiras. Pode não parecer muito mas aquilo ia fazer muita diferença. Poderíamos seguir adiante. 

Às oito da manhã, com as travessias ainda paradas, seguimos para o aeroporto. A paralisação no mar, claro, havia refletido nos voos. Estava lotado e a nossa chance de conseguir partir para Atenas ainda naquele dia parecia quase zero. Às oito da noite saia o ultimo avião, eram sete e meia e ainda estávamos na lista de espera. Faltando cinco minutos para deixar o solo, três assentos vagos e o momento mais feliz desse caminho. Como era bom ver alguma coisa dando certo”.

O resto do caminho 

“Chegamos a Atenas naquela noite e pegamos um hotel. Mal pudemos dormir novamente e já partimos cedo para pegar um ônibus rumo a Macedônia. Minha memória não gravou tudo o que aconteceu esse dia. O cansaço e a fome quase não me deixavam pensar mais. Me lembro de cruzar a fronteira, trocar de ônibus e chegar a um acampamento bem pequeno, que servia para passar apenas algumas horas. 

Foi o que aconteceu. Seguimos caminho. Como nos tratavam mal. A polícia principalmente. Lá e na Eslovênia, o país que passamos na sequência, foram os lugares onde mais nos mal trataram e insultaram.

Quando chegamos à Áustria, porém, fomos muito bem recebidos. Nos deram comida - uma comida super boa, aliás. Nos deram camas boas. De lá fomos finalmente para a fronteira com a Alemanha, onde a boa recepção também se mostrou de início. Pudemos escolher para onde ir, tínhamos locomoção livre.

Fomos ao encontro de primos de Diala e Joud, em Berlim”. 

Hoje – 23 de Novembro 2015

“No momento estou em acampamento para refugiados em Berlim. Tem muita criança. Tem muita criança doente. O caminho foi muito difícil e fazia muito frio. Na verdade, está todo mundo doente. Ainda está muito frio e super lotado. 

Pelos próximos três meses, tempo que devemos ficar por aqui, vai ser difícil, muito difícil. Depois, pegamos nossos documentos, a permissão de residência no país, e as coisas vão melhorar. Vou poder começar a trabalhar aqui legalmente, vamos poder procurar uma casa. Vai ser difícil só por esses três meses... quer dizer, talvez quatro, seis. Não sei. Mas vai ser melhor. 

Eu nunca chorei. Eu quase chorei. Eu tinha lágrimas nos olhos mas não consegui chorar. Não sei porque. Talvez porque eu achava que deveria me manter forte. Eu queria chorar no final, não queria me deixar abater e me sentir fraca no meio da viagem. Sabia que se começasse ali, talvez não conseguisse mais segurar as lágrimas nos próximos passos. Segurei as lágrimas nos olhos e olhei pra frente. São apenas dias, e dias... isso vai passar. Uma parte já passou depois de vinte dias, tempo total que durou a viagem até aqui.” 

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